SONHOS HÚMIDOS
Jorge Silva
 
 
Ela espirrou-me da sua vida, sem um adeus. Sem nunca me permitir uma intimidade verdadeira, sem amor. A história da minha existência, um ciclo permanente de inícios com final marcado, aditava outro capítulo triste, outra reles beata no amargo cinzeiro da minha frustração.

Amei-a, como sempre amei os corpos partilhados com o meu. Usei-a, como parecia ser meu destino e objectivo último da minha passagem por um mundo que recusa aceitar as suas próprias consequências. Ela, como outras, de nada me serviria de outro modo. Tive uma educação arcaica.

No voo sem rumo que empreendi então, conheci outra mulher. Logo, seduzi-a. Pouco depois, entrei naquela alma, penetrei aquele corpo indefeso. Possuí. E iniciei outro processo doloroso de apropriação total de um ser. Esta, não conseguiria repudiar-me.

Ao longo de meses percorri-lhe a carne, por dentro. Respirei-lhe o ar, destruí as frágeis defesas com que ela se tentava proteger do meu efeito nefasto. Abusei, abusei muito da tolerância daquele amor unilateral. Mas conheci uma excitação sublime, sempre que a ouvi gemer de dor. O prazer, claro, foi todo meu.

Ficaria com ela para sempre, até se-lhe acabarem as forças para lutar contra um amor assim. Mas ela resistiu, fêmea danada. Procurou auxílio contra mim. Eles vieram ao meu encontro sedentos de vingança, com a morte nas células. Conheciam-me bem, depois de tantas gerações de extermínio. Mas consegui fugir.

Não voltei a vê-la. Porém, sinto que recuperou dos malefícios da minha passagem. Imagino-a robusta, bonita, como no dia em que a conheci. E recordo o calor daquela pele, aqueles lábios carnudos e bem desenhados que desvairavam a minha imaginação. Aquele fogo interior, promessa latente de inconfessadas loucuras que a nossa relação sempre encontrou forma de adiar. Acabará sempre por ser um pouco minha, bem o sei, a protagonista das minhas mais escabrosas fantasias. Porque nenhum homem poderá disputar, nos bastidores da memória dela, o espaço que para mim reservei. Um pequeno cantinho para a recordação eterna de um genuíno bacilo de Koch. Da velha guarda...

 
 
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