A ARTE DAS SUGESTÕES CONTRAPOSTAS
Lysander
 
 
A história é concebida de formas muito variadas. Alguns a vêem como um mero registro, outros como ciência. Certa corrente enxerga nela o estudo do progresso da humanidade rumo a um determinado e futuro objetivo; já para uma outra corrente, é a análise das relações humanas como derivadas principalmente da economia. Em suma, as opiniões são diversas, de acordo com a formação intelectual de cada estudioso, e mesmo segundo seus objetivos práticos. Para mim, particularmente, a história sempre foi uma arte, e das mais belas que a humanidade já criou. A arte das sugestões contrapostas.

Trata-se da arte mais tipicamente humana, por excelência. Ora, é notória aquela anedota estatística de que se se isolassem cem macacos numa ilha, cada qual com uma máquina de escrever - ou com um notebook com o microsoft office instalado e uma impressora, para ser mais atual -, em algumas centenas de anos acabariam por escrever toda a obra de Shakespeare. Com a história é diferente. Um gato brincando hoje com um novelo de lã é rigorosamente idêntico ao que o fazia há cem anos atrás. O animal de hoje não vai interpretar historicamente o que seu antepassado fazia, e tampouco o ancestral vai se preocupar em registrar para gerações futuras suas técnicas com o novelo de lã. Só nós, homens e mulheres, somos capazes disso.

Sei que pelo menos os gregos concordam comigo, ou melhor, que pelo menos eu concordo com eles... Tanto que havia uma Musa na Grécia só para a história: Clio, representada freqüentemente envergando um pergaminho. Além disso, as obras dos historiadores daquele povo, especialmente Heródoto, eram genuínas obras de arte tragicômicas, sem absolutamente nada de científico (e isso é um elogio). Lembre-se, por exemplo, da forma como, segundo Heródoto, o ateniense Pisístrato resolveu uma feroz guerra civil na Atenas do século VII antes de Cristo. Esse genial líder havia encontrado em povoado vizinho uma mulher belíssima, chamada Fia, e também muito alta - media quatro cúbitos (cerca de dois metros). Farto da guerra fratricida que flagelava Atenas, concebeu o seguinte estratagema: vestiu Fia com uma armadura completa de guerra e fê-la montar o cavalo mais imponente que pôde obter; em seguida, mandou um arauto na frente a anunciar aos atenienses que a deusa Minerva estava chegando, e que ela não mais toleraria nenhuma hostilidade entre eles. Quando, mais tarde, Pisístrato retornou à cidade, acompanhado da "deusa", viu seus concidadãos prosternarem-se fervorosamente, depondo as armas e pondo fim à guerra.

"Está vendo", disse Pisístrato à sorrelfa a seu assessor, "se eu tivesse seguido sua sugestão de fazer marchar outro exército sobre nossa amada Atenas, a estas horas teríamos matado um número ainda maior de nossos irmãos e a guerra perduraria! Por isso preferi usar do ardil, da esperteza!". Essa passagem ilustra bem o objeto da arte histórica, já mencionado acima: sugestões contrapostas. Enquanto o assessor sugerira uma solução militar, o chefe, em contrapartida, propôs solução ardilosa, porém pacífica. Prevaleceu o uso da inteligência e da razão, com uma certa dose de superstição, para um desate feliz.

O atual capítulo histórico que vivemos, o da guerra que os Estados Unidos movem contra o regime fundamentalista afegão, talvez possa ser analisado sob esse mesmo prisma original, modéstia às favas. Como os fatos são bem conhecidos de todos, podemos passar logo à interpretação: os americanos sugeriram delicadamente ao regime Talibã que entregasse Ozama Bin Laden à sua custódia; os Talibãs sugeriram, agora já com uma certa impolidez, que os americanos fossem dedicar-se à prática do sexo anal. Resultado: o Afeganistão hoje está vivendo uma nova peste bíblica, a chuva de mísseis Tomahawk... Aqui houve sugestões igualmente contrapostas, todavia com a prevalência da irracionalidade belicosa ao final. Acho que temos carecido de uma melhor prática da arte da história...

Até na vida particular, do dia-a-dia, o bom cultivo dessa arte pode vir bem a calhar, pois o presente também é história. Dia desses convidei minha colega Ana Elisa (ou Ahn Delícia, como a costumo chamar) para sair, e ela topou. Sugeri um cinema; ela contrapropôs um teatro. Sugeri, depois, um restaurante italiano; ela rebateu com frutos do mar. Sugeri, quando acabamos de comer, uma ida à Praça do Papa, ponto de inspiração da cidade, para refletirmos; ela contra-argumentou que era melhor refletirmos na porta do restaurante, mesmo. Finalmente, sugeri um motelzinho; ela, em contrapartida, sugeriu que eu fosse à matéria fecal...

Realmente, a história, tanto a dos povos como a do indivíduo, é a arte das sugestões contrapostas.

 
 
fale com o autor