BANHA DE COBRA
O ADVENTO DE ANTONIO, JUSTICEIRO MODERNO
Jorge Silva
 
 
Resplandecente, sentou-se e fixou o olhar em mim. Pastinha no colo e gravata de eleição, recitou maravilhas (que o preço só no fim). Queria vender qualquer coisa, não percebi bem o quê. Falou-me de sucesso e fortuna, garantia total, brindou-me com um sorriso pouco ou mesmo nada original.

Retorqui sem esperança que não estava comprador mas o diabo da criatura, do alto do pedestal, estava com a corda toda e soletrou-me o manual.

Tenho muito e tenho bom, não parou de afirmar. Só para si e apenas hoje que estamos em promoção, trago delícias com fartura e uma fácil decisão. Comprar é muito bom, mas hoje dia santo, decidimos oferecer. É que a vida só é boa pelo prazer de se ter. Quem não tem é gente pouca, quem não quer é gente louca e ainda ontem eu ouvi que um pobre coitado morreu amargurado por recusar uma oferta assim. E é pena, não precisava, que o crédito é certinho e connosco nunca falha. Já agora, diga lá com que bancos trabalha?

Fiz-lhe ver que estou servido, mas o homem não se cala. Sacou logo de uma amostra, argumento brilhante no forro da mala. Cheio de truques, muita magia, barulho das luzes que me confundia. Eram lindas, as promessas. Mas faltavam as premissas e cuidei de indagar:

- Afinal diga lá quanto é que isso me vai custar?

A expressão não mudou, até porque se fazia tarde. O vendedor lá se calou, com um sorriso mastercard. Dinheiro não é problema, para tudo há solução. E o fulano abordou o tema, descontraído, confiança de vencedor, mais uns maços de papelada pintada, cores apelativas e mensagem subliminar. Para adiar uns minutos a machadada final na minha contra-argumentação, eventual.

Que tempo é dinheiro, frase feita encaixada à porrada na verborreia, e o seu é precioso para mim. Dizia ele. Para mim e para a empresa que me orgulho, apontava para o emblema na lapela, de representar. Representar, não duvido, pois mesmo o mais incauto consumidor adivinha na música de um profissional o mero desempenho de um papel ou a respectiva recitação, numa canção.

De embalar, presumo eu, quase a dormir na cadeira. E os números, contas feitas pelos mais conhecidos "gurus" da alta finança, a peso de ouro, garantia ele, para o investimento certeiro nos multiplicar o dinheiro em catadupas. E a posição, o estatuto, as evidências que nos superiorizam aos outros em qualquer comparação à distância. A ganância faz escola nos mais modernos departamentos comerciais, seitas de ambiciosos proactivos a invejarem o sucesso do parceiro no palanque desse ano, rezingava eu em silêncio no conforto de um olhar atento a um ponto fixo no horizonte. Uma mosca, molengona, imóvel na parede no enfiamento do rosto do malabarista que eu já não suportava ouvir.

Vai-lhe custar uma ninharia, esta magnífica aquisição. Assim concluiu a palestra, entusiasmado, o meu mui bem trajado interlocutor. Cifrões nas pupilas, aquele cartoon de pessoa sobrevoou a mercadoria sedutora sobre o tampo da secretária, de uma ponta à outra, num gesto que lhe soou majestoso. Mas era "patético" o termo que ecoava, vontade de o expulsar bem e depressa dali. Um pobre coitado, bem sei, figurante do filme em que se julgava o actor principal, peão minúsculo traído pela soberba num tabuleiro de xadrez sobrelotado de peças graúdas com um apetite voraz.

Eu, mordi-o à primeira, potencial comprador calejado, saturado de impiedosas mentiras que me injectavam a cada instante, as sanguessugas. Aquele material de origem duvidosa, manhosa, a mim nunca enganaria. Outro farsante descarado, pensei. Folheei com nojo o mostruário de sonhos ao alcance do cidadão comum, a troco de quase nada para alguns.

Posso sugerir? Este ruído provinha dele, preocupado com os meus sinais exteriores de hesitação. Era a pergunta sacramental, o fecho apressado do processo negocial, antes que o burlado pense demais. Instinto de matador...

Desloquei o olhar de um automóvel de luxo estacionado numa fotografia para amparo da loira escultural e famosa que aquela imagem visava afinal promover. Senão, que faria a loira ali?

Mas o olhar deslocado passeou por todo o lado, vagueou ao sabor das manias da mosca que entretanto voou. Enquanto eu pensava tudo aquilo e lamentava o tempo que perdi. Ponderei a oferta generosa que me era feita, poder de compra ilimitado. Tudo o que quisesse porque tudo se vendia. Ou cambiava, tanto fazia, desde que a organização lucrasse também.

De uma permuta se tratava, a essência era a cedência, um negócio infernal, da alma e do pudor por uma vida facilitada. Vontade, Ambição, Deslealdade e Corrupção. Um bom tacho, pouca vergonha aos molhos para engrossar a mistura e está feito o caldinho, entornado em abundância na lombada do visado até não lhe restarem vestígios de uma coluna vertebral. Depois, é só enriquecer o poder de comprar outras consciências, ramificar a operação. Receberia, prometeu, um exemplar do Manual do Medíocre Empreendor e do Crápula Bem Sucedido (enésima edição), contra entrega.

A mosca pousou, mesmo no nariz da criatura. Só então olhei a sério para aquele par de bolas baças, poços redondos sem fundo, buracos negros que sugavam tudo em seu redor, insaciáveis e inexpressivos no rosto do predador. Olhos de tubarão.

Contudo, nada temi. Nem quando ele sacou do derradeiro canhão e me borrifou a face de perdigotos, pólvora seca, mais a sibilosa sugestão. Que não desse tudo de uma vez, entregava às prestações, a alma e tudo mais que houvesse a abdicar em prol de uma excelente opção de qualidade superior. Quem mais dava, mais obtinha daquela generosa e inesgotável galinha. O juro era baixo, tendo em conta o benefício, e não doía tanto, aos bocadinhos. E rasgou a cara lado-a-lado num sorriso ensaiado, favola de ouro incrustada no maxilar superior para impressionar o freguês. Os abutres circulavam agora por perto, disfarçados de mosca, acredito eu.

A jovem víbora, bocarra aberta, preparava-se para me fincar a dentuça no peito e envenenar-me o coração.

No meio destes raciocínios, perdi o fio à meada e esqueci-me completamente da minha própria sugestão acerca de para onde deveria encaminhar tão sebenta mercadoria.

Não cedi, para surpresa do invertebrado. Engoliu em seco, a custo, a tentadora maçã que me propunha. Vexado, procedeu tristemente ao desmontar da pequena feira instalada diante de mim, na zona do pisa-papéis. Em absoluto silêncio e de sobrolho franzido, fechou a mala. Depois, ajeitou o cabelo de modelo e ensaiou um olhar de desafio.

Foi aí que perdi a paciência e iniciei o processo de retaliação. Tinha acabado de chegar a este viveiro de ervas daninhas quando a minha secretária e assistente, Valquíria, marcou a entrevista que o idiota tanto insistiu em obter. Nem me deu tempo para arrumar a tralha que nos acompanhou nesta longa viagem, a mim, à minha indomável Val e aos dois cavaleiros destacados para a primeira fase da missão, Miguel e Joel.

E passo a apresentar-me, sou António, não sou um santo mas venho em nome do Bem. O papalvo que jaz desmaiado no chão servirá de mensageiro da nossa chegada às forças que nos antagonizam. Consta até que parecem estar prestes a ganharem a Derradeira Batalha, tamanha a evidência da sua superioridade. Mas não. Viemos cá para acabarmos de vez com esta balbúrdia, munidos de ferramentas eficazes que se coadunam com uma nova vontade política do nosso Superior. Agora, é a doer.

E o fulano tombado no tapete, reprogramado para servir a nossa causa, desmaiou apenas porque, por reflexo nervoso, uma das minhas asas colidiu violentamente com o seu rosto.

Porém, sugiro que não tirem daí conclusões precipitadas...

 
 
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