UM
CERTO OLHAR
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Antonio
Rodrigues
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Eu me
afastei do teu lado
querendo-te sem sabê-lo. Já não sei como são teus olhos, tuas mãos, nem teus cabelos. só me resta na face a quimera do beijo" (Madrigal - Garcia Lorca). "... de modo que esse sentimento, Senhores Juízes, anunciado e apregoado tão ardentemente em nossas praças e ruas pelo acusado, a outra conseqüência não conduziria nossos jovens senão à de corromper seus corações imaculados, fazendo-os crer que existe um algo maior que o supremo poder de Deus..." O acusador andava de uma extremidade a outra do cadafalso erguido em plena praça central, gesticulava, elevava o tom de voz, agravava-o e, dedo em riste, associava cada palavra de desagrado que encontrava ao silente Kraven, apontando-o. "... a Igreja já exerce o santo mister de bem educar espiritualmente nossos filhos e filhas e somente a ela é dado dispor sobre os sentimentos que possa um coração humano comportar..." Kraven... homem delgado, vasta cabeleira em desalinho, olhos de azeviche, rosto desprovido de barba, tão apreciada pela gente séria da cidade, mãos atadas, dois guardas a espreitá-lo... Kraven... o olhar fixo nos aldeões, velhos, mulheres, crianças... as casas, o vale, o horizonte... e ela que não chega, será que não vem? "... quem de vós em sã consciência ousaria admitir sacrifício outro de nossas almas que não fosse em nome e em glória de nosso Senhor? Aos seres humanos, nossos semelhantes, a eles nossa compaixão, nossa tolerância de conviver e benevolência de compartilhar, mas nunca a devoção absoluta, nunca a adoração..." Alguém encapuzado lentamente perpassou a multidão. Alguém que saiu da casa do Comendador e se colocou próximo ao tablado o quanto lhe era possível. Alguém que ao simples soerguer dos olhos de esmeralda fez acender no coração de Kraven uma centelha de esperança. Não poderia tão verdadeira jura ser esquecida. "... não bastassem seus desvarios, o acusado, cego pela loucura talvez e sem medir as conseqüências, intentou fazer a corte da filha de um ilustre aldeão, cativando-a com palavras e nada mais. E não desconhecia estar ela já prometida a um nosso nobre vizinho de longa data, homem de bens... quero dizer, homem de bem..." Estivesse o acusador menos preocupado com sua pedante oratória e os aldeões menos atentos à baba que lhe escorria pelos cantos da boca, acumulando-se ali mesmo em um branco pastoso, e teriam presenciado uma amostra do que possa ser a eternidade silenciosa de um minuto repleta de significados, ao cruzarem-se os olhares de Kraven e Emily. "... ocorreu, Senhores, que colocados frente a frente pelo distinto pai da moça, este parvo aqui e a jovem Emily, foi ela indagada sobre a veracidade das palavras do novo pretendente. A moça negou três vezes que dele estivesse enamorada. Constatada, pois, a afronta, a injúria, a maledicência atentadora dos costumes familiares e sociais, trouxemo-lo a julgamento. Só pelo mero prazer de argumentar, confirmasse a jovem Emily as pretensões do acusado e certamente nada disso seria necessário..." Não. Ela disse nada. Nem antes, nem agora. Estaria toda fé fadada à descrença? Estaria toda promessa relegada ao engano? Mas... o olhar de Emily não era de indiferença nem de desprezo nem de desesperança. Aquele olhar, que agora novamente se refugiava sob o capuz, era deveras sugestivo. Pobre Kraven! Que estaria se passando em seu íntimo ao ver que sua Emily lhe dava as costas e partia? "... ou, ainda, bastaria o acusado desfazer-se do orgulho e da teimosia, bastaria o acusado negar toda sua crença hipócrita e exigiríamos apenas que fosse desterrado de nossas plagas, para sempre, ao invés de mandá-lo à forca, porém...." "Eu renego minhas crenças!" Talvez alguns aldeões achassem a causa de morrer nobre ou considerassem espetáculo primoroso um enforcamento, porque somente essas hipóteses justificam as manifestações de descontentamento ante a atitude do acusado. O acusador apenas indicou com um gesto facial que estava disposto a ouvir. Emily, ainda de costas para o tablado, parou. "De fato, sou um parvo. Meus pés não são dignos deste solo, os andrajos que ostento não são merecedores de vossos olhos e meu tolo coração jamais poderia abrigar a mais sublime das paixões humanas. O amor não é para medíocres, o amor não é para escrotos, para os ímpios o amor não é. E eu, inocentemente, cogitei tê-lo reconhecido quando repousei os meus nos olhos de Emily. A sinfonia vinda de não sei onde que pensei ter ouvido, o lirismo daquela poesia jamais declamada, oh infaustos enganos! Reconheço que se repentinamente minha existência passou a fazer sentido foi porque até então estive a vagar sem rumo certo, foi porque jamais me apeguei à real significância dos sagrados valores e conhecer Emily causou-me o impacto que só um milagre causaria. Mas que mulher seria capaz de motivar com mais alento, com mais ardor, com mais sofreguidão as breves e sagradas batidas da vida no coração de um homem? Que mulher seria capaz de nos levar a perscrutar quimeras inefáveis e - mesmo se sabendo não poder possuí-la - louvá-la, amá-la, adorá-la sobre todas as coisas, tal qual um desvairado trovador que apenas contemplasse sua Senhora em recital lamurioso? Que mulher seria capaz de dizer com um simples olhar a um homem desesperado que o sacrifício de um ideal é nobre e é válido se a finalidade maior for a sacramentação do amor improvável, do amor inaceitável? Tal mulher só existe em meus sonhos alucinados! Assim é que dou por reconhecido meu juízo afetado, senhores, e, dispensando o enlace carinhoso e fatal desta sequiosa corda, renuncio solenemente minhas crenças, renuncio à bem-aventurança de conviver entre vós e aceito de bom grado o perpétuo desterro." À hora crepuscular do terceiro dia após o julgamento, finalizados todos os atos processuais e feitas as devidas advertências, Kraven foi posto em liberdade e convidado a deixar o vilarejo. Chovia e trovejava e escurecia vertiginosamente. Uma noite que jamais seria esquecida, porque era o prenúncio de que a aurora seguinte revelaria aos perplexos aldeões a ausência daquela que jamais retornaria. A ausência de Emily. "Padre, por favor, peça a Deus que perdoe meus pecados. É que Kraven era meu amigo e eu o ensinei a mentir. Disse que bastava cruzar os dedos. Mas hoje aprendi na missa que toda mentira é pecado, não é? E aquele dia na praça, por culpa minha, Kraven mentiu porque enquanto falava cruzava e descruzava os dedos. E eu, embora estivesse com meus dedos cruzados, menti também porque disse que não sabia para onde foi Emily. Na verdade, antes de ir embora, ela disse que eu a perdoasse mas que precisava ir embora com aquele por quem se apaixonara, que é o meu amigo Kraven. Fora isso, só queria saber também por que é que os bispos mentem tanto... e nem cruzam os dedos! Eles se confessam também?" No domingo seguinte, confessou-se assim o Alan, irmão caçula de Emily. |