SÃO
DOLENTES AS NOTAS QUE ESCUTO
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Antonio
Geremias
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São dolentes as notas que escuto, esse violão e essas duas mãos tocando-o, tenho um quarto cheio de dolência. Movo-me ao redor de minha barriga, um tanto inconveniente nesta noite, nédia e gravitacional, a Lua passando sobre os telhados ainda baixos deste meu bairro. Comi demais, é isso. O casaco apenas cobre uma camiseta, o vento ainda está úmido e pleno à lua lunar. Meus bons calçados. Há poças de água pelo chão, e lembro-me de uma dívida que preferia não ter feito, que não admito esquecer. A ladeira mexe meus quadris e a arma ajeita-se sob o casaco, leve e que de nada pode me proteger. Peido discreta e solenemente ao final da subida: meus intestinos, os dois, movimentaram-se e redistribuíram seu conteúdo. Há lubricidade e postura em meu caminhar, sinto, sinto. Os cabelos estão úmidos também, eu e a noite, molhados e excitados, caminhamos até a avenida mais próxima. Tantas lojas novas, artesãos, fadas, roupas e brechós, destilados e fermentados e em pó ou vegetal! Paralisado já, agora, de repente, não ouso mesmo mover-me. Eu ouvi, com certeza, um clique, como o clique de uma arma que se arma, o cão para trás, chupando manga, a camiseta enroscou-se? As pessoas passam por mim e me olham, pois meu cabelo prateado esvoaça cheio de cachos pelo ar, úmidos, e também me olham pois estou ali, especado, duro como um dois de paus. Não foi nada, passo a mão, só impressão mas não gostei da minha impressão e a Lua precisa brilhar mais para retornar à minha mente, minha alma, toda aquela impressão que estava tendo antes, de como se não houvesse problemas em minha vida, a não ser uns poucos. Essa arma põe idéias em minha cabeça, sugere coisas, sinto por dentro de minha cabeça meus cabelos a coçarem, para dentro são tantas idéias... A avenida sobe e faz barulho com seus muitos carros e ônibus que sobem, ainda poucas as árvores, elas se balançam, e seus galhos alongam-se atrás dos caminhões e jipes, carros. Há pessoas nela, homens e mulheres e os dois tipos de gente me olham e eu gosto. Muito mesmo. Ando com um certo movimento que me agrada, as pernas esticam-se e encaixam-se nos quadris, que se ampliam e sustentam as costas. Estas ainda não estão bem resolvidas, mas eu chego lá, eu sei. Lanchonetes, ponto de táxi, igreja e hospital. Descida. E agora eu dobro à esquerda e vou para casa. E só no meio do caminho de volta acordo e percebo que estou perto já, sem ver algo ou nada, subindo ladeiras e descendo. Não me apaixonei nesta viagem ao redor do meu mundo, apenas olhei para o umbigo parte dessa odisséia. Pois então ele está ainda acordado, enorme cachorro animal, seu jeito de espreguiçar-se é modelo e ânsia para mim de tão perfeito. Cagou no quintal novamente e eu, de novo, não vou limpar. Tão bom usar o próprio banheiro e depois, lavar as mãos, escovar os dentes, secar um pouco os cabelos. São poucos os caminhos que saem daquela porta. Dali ainda se pode usar uma rota noturna que poderia tê-lo deixado em um bar, 12 quadras, luz amarela e uns velhotes que não haviam dado certo; outra... Bem, não havia outra, parecia. Pensar em sair do bairro era muito difícil, ir para outras regiões, do outro lado do espigão, nem se fala! Mas saía que não havia como e gostava mesmo de caminhar. Mas não queria às vezes, tão difícil tornar-se gente! Muita ladeira, muita droga no caminho pra jogar fora, internet, punhetas e óculos de farmácia. O que mais o magoava. E havia a padaria, o restaurante e o sonho de a filha vir morar com ele. E a dolência continuava quando abri a porta e a luz da lua, agora luar, entrou. Parei. Só olhando o quarto clarear um pouquinho mais, e eu andar até o meio dele, ainda no escuro, parado ali só fazendo nada parado no meio daquela pouca luz. E a dolência continuava. No momento em que houve o turbilhão em seu cérebro teria sido preferível que a conexão estivesse operante porque aí ninguém poderia mesmo ter ligado. Seria uma desculpa. Mas essas não vinham mais não havia mais desculpas e bem poucas esperanças. Não ter passado do momento anterior ao turbilhão para o seguinte, que seria de puro desespero, só mesmo autocontrole uso frio do cérebro. Mas algum dano emocional deve ter-se realizado. Dia após dia desvencilhando-se de coisas. Do amor pela mulher que se foi; do desejo por novas roupas. Trazer a filha para morarem juntos. Novos livros. Comer carne todos os dias. Ou duas vezes por semana. Cinema, teatro, galerias. Tudo que é meu juntando-se a caminho do lixo uma parte de tudo que é meu que fui eu sendo construído durante quantos anos? Quarenta? A outra redistribuída naquelas três peças desoladas, paredes nuas, tijolos crus apontado acima da linha onde uma vez apoiara-se um forro. O computador, a internet, o simulacro de uma presença do outro lado da linha. A releitura daqueles livros gastos, o uso das mesmas roupas ásperas, uma lacrimosa voz nos autofalantes. Dolência? Não, ninguém ligou, nenhum telefonema. Apenas e-mails não há conexão não há ligação feita, as outras, as que foram, foram-se aos poucos, pedaços esbatidos contra as paredes, restos turvos dentro da velha geladeira. Algum tipo de fim deve estar próximo. Algum tipo de alívio. Tiro a arma e dispenso-a sobre minha mesa predileta. Estou em casa é o que isso significa, o casaco também agora úmido mas seca a camiseta. Calças e sapatos para os lugares das calças e deles. Paro a olhar para a arma, como se ela falasse comigo, como se ela fosse uma última sugestão idéia que meu pai mandasse de seu túmulo meu pai que bebia meu querido pai que nunca me ajudou porra nenhuma. Maldito morto pai, você e suas sugestões, porque não faz isso ou aquilo. Deito e apago a luz mas deixo a porta aberta, pois onde o luar vai dormir? |