A PRIMEIRA PEDRA
Renato Bittencourt Gomes
 
 
Era uma enorme gota de sangue cristalizada no dedo do meu pai, um anelão de rubi que ele usou durante muito tempo. Nas minhas recordações mais antigas, sua mão direita ostentava aquele gigantesco ponto vermelho. Lembro daquele homem nos dias de inverno (a dura estação fria do Sul) com um sobretudo acinzentado que fora do seu pai, lenço no pescoço e boné. Era vaidoso, com seu bigode preto acastanhado, os sapatos sociais lustrosos. Um homem antigo. Era encargo nosso, dos filhos varões, o cuidado com os calçados. Passado tanto tempo, carrego esse zelo comigo, vida afora. Porque ela me disse, sei que o polimento das botas e mocassins é algo que minha ex-esposa lamenta e chora em nossa separação. Mas isto é outra história.

O que preciso registrar aqui é que com meu velho aprendi a busca da sobriedade e da distinção na maneira de trajar. É um dote que muito aprecio, até porque essa é uma das poucas coisas que comungo com meu irmão, pessoa que escolheu caminhos muito diversos dos meus. Ou, a bem da verdade, preciso reconhecer que sou eu o divergente, aquele que walks in the wild side. Também devo ao nosso pai um pouco dessa mania de ser o maluquete da família. Mas a culpa não é toda sua, porque fiz e faço muita bobagem por minha própria conta.

Também é herança paterna esse gosto pela leitura, esse desejo de ilustração, esse cultivo do conhecimento de almanaque, que muito tem contribuído para minha manutenção, já que abracei o incerto ofício de revisor. Ou seja: vivo de apascentar os textos alheios. Claro que não é ocupação de quem queira enriquecer, mas também do pai vem essa negação ao arrivismo, ao mercenarismo. Somos da contramão sim.

Nos seus livros e na sua conversa fui pegando jeito para esse lento acumular de coisas aparentemente banais que muitas vezes fazem a diferença. E, ingrato, durante muito tempo me revoltava o fato de o autor dos meus dias não ter me ensinado uma arte de sobrevivência. Ora, não percebia eu que nem ele tinha profissão definida. Como poderia querer que me legasse o que não era sua posse? Hoje, posso entender melhor as coisas. Para um menino criado numa rua de terra no interior do Paraná chegar até uma ladeira do Rio de Janeiro, houve muito chão. E quando, homem feito, penso esse menino paga seu aluguel e seus charutos trabalhando com livros em um país de tantos analfabetos (os de fato e os de direito), vejo que caminhei bastante. Assim, agradeço e prezo. Guardo no fundo do peito.

Da mesma forma que o velho anel de rubi do meu falecido pai está bem guardado com sua viúva, minha mãe. Eu uso uns anéis de prata, coisas de pouco valor comercial. Tenho muita estima por eles, no entanto. Estão sempre aqui, são uma das minhas marcas no mundo de indiferença em que hoje vivemos. Um deles tem o formato de uma pequena cobra enrolada em meu dedo mínimo. Seus olhos são duas pedrinhas de vidro. Sinal dos tempos. Porque tudo está em extinção. Pedras, madeira, couro, água, conhecimento, afetos. Tudo que é verdadeiro está acabando. Mas, contra a maré, sigo em frente, não deixando meu defunto pai terminar em mim.

 
 
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