PEDRA D'ÁGUA
Luís Valise
 
 

Abri os olhos devagar. Reconheci o teto e o lustre. Acordar já era motivo de contentamento. Outro dia, mais um dia. Pode não parecer nada, mas depois de uma certa idade tem gosto de vitória. Nem importa quantos anos eu tenho agora. Não faz mais diferença, embora para os outros seja motivo de espanto: - puxa, vô, nem parece! É preciso paciência para agüentar os olhares estranhos de quem tenta adivinhar minha idade. Curiosos por algo em que tento não pensar, pois certos pensamentos trazem outros, inevitavelmente. Só sei que já faz muito tempo que acordo todas as manhãs, com a espectativa das novidades que estão por vir. E não pense que nesta minha idade já não existam novidades. Quando chegar sua vez você verá que mesmo velhas coisas podem ser novidades, e entenderá que o que mudou foram seus olhos, seus sentidos, suas compreensões. Com algum esforço exagerado pus as pernas fora da cama. Vi meus tornozelos, agora mais finos e sem pêlos. Bons tornozelos, estes.

Os chinelos macios não faziam ruído ao meu lento caminhar. No banheiro olhei o espelho e por instantes vários rostos desfilaram na minha frente, todos meus. O olhar foi o que menos mudou. O restante era uma tragédia, ao menos para mim. Qual mulher me olharia do jeito que eu conhecia tão bem? Nem pagando. Sem que ninguém perceba, às vezes finjo cochilar e fico prestando atenção nas mulheres que passam por mim. Ao menos o olfato não foi (ainda?) afetado, e percebo todos os perfumes que exalam, agora que qualquer cheiro percorre caminhos na memória buscando semelhanças e histórias. Incrível como tudo se encaixa numa história: o som de saltos no assoalho, risos de qualquer intensidade, o fru-fru das saias que agitam o ar à minha volta. Tudo se encaixa num pedaço de história como um jogo de armar que nunca se completa.

As refeições são monótonas. Ficariam melhores se eu abandonasse a dieta. Se eu quero seguir com a alegria de acordar, ainda que para ver o mesmo lustre, tenho que comer o que me determinam e não o que gostaria. Com freqüência me pergunto se vale a pena. E penso em temperos apimentados, molhos densos, carnes sangrentas. A boca saliva. Busco no passado o gosto de um filé ao molho de pimenta, aquelas do reino, pretinhas e redondas. A boca arde e me socorro de um tinto pesado, o rubi dançando na taça. Enxugo os lábios no guardanapo e me surpreendo com a ausência do vermelho. Ergo novamente a taça e deixo o vinho escorrer pra dentro da boca. Encho as bochechas e um gole de veludo desce pela garganta. O guardanapo me traz de volta, imaculado.

Antes de deitar, fico por alguns instantes sentado na beira da cama. Ninguém me perguntou o que fiz durante o dia. E eu viajei. Se me perguntassem eu diria que estive na infância, logo peguei um atalho pra chegar à juventude, e aí me demorei um pouquinho. Quando dei de novo por mim estava na melhor parte. Não sei bem quando começou e me recuso admitir que haja terminado. Deitado olho o lustre e tenho a impressão que ele também olha pra mim, mas isso é ridículo. Mesmo assim, quando ele fecha os olhos vem a escuridão, e então eu sinto medo. Fico quietinho, sem me mexer, torcendo pra que este rosto velho e feio esteja ali, no mesmo espelho, outra vez, amanhã.

 
 
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