A PEQUENA VALISE MÁGICA
Lisa Simons
 
 
Olhos de ressaca... Bastou cruzar com eles, na recém inaugurada uisqueria do Recife Antigo, para identificá-los. Finalmente, Osmar pode compreender como eram os famosos olhos de Capitu, personagem do romance Dom Casmurro que sempre o havia intrigado, deviam ser como os dela, tão inebriantes que imediatamente esquecera a promessa feita a si mesmo de nunca mais se envolver com mulher nenhuma, a última, Lourdinha, custara-lhe um apartamento de dois quartos na Boa Vista e muito teatro. Chegou mesmo a alegar um câncer de próstata para se livrar da bendita, que era insistente, jurava paixão eterna e estava disposta a tudo para acabar seu casamento de quase trinta anos com Maria da Paz. Depois dessa experiência traumática ele jurou: sexo, só virtual!

Entretanto, a carne é fraca, passado algum tempo lá estava ele atrás de um rabo de saia, seduzido, tragado e impulsionado a um mergulho insólito, sem amarras e limites. A simples visão de Frederica (era o nome dos olhos de ressaca) submeteu-o a uma espécie de encantamento, o rosto corou como na adolescência, não parou de suar, nem de tremer, um frenesi inusitado. Seus joelhos batiam, um de encontro ao outro e, do copo os cubos de gelo, sacudidos no ritmo do corpo, escaparam deslizando no balcão em direção a mulher, sentada na outra extremidade. Ela fitou Osmar, insistentemente, durante alguns minutos até se dignar a sorrir e ele criar coragem de se aproximar, respirando profundamente e concluindo: é ela.

Na verdade nunca vira Frederica antes, conhecera-a no bate-papo do Terra, onde ela se apresentara com o pseudônimo de "Enfermeira". Era ainda jovem (trinta e dois anos) e prometia ser o par perfeito para hipocondríacos de plantão, pois estava disposta a mimá-lo com cuidados só dispensados a bebês. Dizia ser especialista em massagem sueca, shiatsu, enfim tudo que um homem podia desejar de uma amante, além de possuir uma beleza diferente, harmoniosa e belos, belíssimos olhos de ressaca.

Já no primeiro contato passou a chamá-la "Rica" por considerar Frederica um nome forte demais para uma criatura tão frágil e delicada. Suas mãos eram pequenas, os pés afilados emoldurados por unhas cor de rosa, um convite a carinhos insanos e ele era um "podólatra" assumido. Ela, por sua vez, só o chamava "Mazinho", estreitando os lábios como se fosse criança.

Tudo em Rica agradava aos sentidos: os cabelos macios, o perfume agreste, o hálito com sabor de mel e hortelã. A voz suave, quase inaudível, obrigando o interlocutor a se aproximar, era o complemento da mulher que mais parecia de porcelana, tamanha a alvura e firmeza da pele.

Seu trajar era minimalista: um tubinho de tafetá marinho, sandálias de salto pontiagudo e uma pequena valise em pelica preta e fosca. Sua única jóia, uma gargantilha em ouro branco e safiras, envolvendo o pescoço longo e fino.

O primeiro encontro já terminou num dos melhores motéis da cidade. Foi uma noite diferente de todas que passara com outras namoradas. Rica não era de falar muito, só o extremamente necessário e isso era uma qualidade admirada por ele, sempre considerou que bastava um olhar para definir uma aproximação, palavras levavam a desencontros de opiniões e ele queria ser poupado de conflitos desnecessários, já chegava os que tinha com a família.

Todo e qualquer gesto de "Rica" parecia espontâneo, desde o banho até a massagem profunda que lhe aplicava no couro cabeludo, ombros e abdome, utilizando-se de um óleo perfumado que guardava na pequena valise de pelica. Suas mãos o manipulavam em movimentos a um só tempo firmes e suaves, e ela só fazia perguntar, timidamente:

- Está gostando? Mais um pouquinho?

Voltar para casa depois desses encontros delirantes era uma tortura, a figura de sua mulher, sempre humilde, cabelos amarrados na nuca, perguntando se ele queria alguma coisa para comer o irritava profundamente e ele acabava sendo grosseiro. Afinal, tinha ela que quebrar o encanto! No ele fundo sabia, atrás da gentileza viria outra cobrança do tipo, onde você estava e com quem.

O tempo passara rápido por Maria da Paz, da antiga beleza nada restou, só ficaram mesmo os defeitos e mais acentuados: insegurança, complexo de inferioridade e mania de arrumação.

Ele também já não tinha o físico de antes, mas tirando a barriga, que o incomodava bastante, era um tipo atraente e mesmo que não o fosse ele estava convencido de que toda mulher adora um coroa de cabelos grisalhos, principalmente se ele estiver atrás de um carrão, for generoso e possuir uma polpuda conta bancária.

Os encontros com Rica se sucediam, neles sempre havia surpresas. Ora sais de banho afrodisíacos, ora um chicotinho, algemas, máscaras e tudo isso ela tirava, como num passe de mágica, de sua pequena valise.

Mazinho já se viciara no absinto que ela costumava servir num pequeno cálice, sem falar do aromatizante argentino que cheirava até a cabeça assobiar. Eram noites de loucura. Rica era criativa, manipulava como ninguém um alicate, terminado o sexo ainda lhe fazia as unhas, tirando-lhe dos pés os calos que Doíam com a mudança da lua e ainda os cravos que despontavam em suas costas. Era muito carinho, muito cuidado que lhe dedicava. Ela era única.

Rica nunca telefonava, seus encontros eram marcados pela Internet. Na tela, sempre vinham acompanhados de flores e música, que ele condoído era obrigado a deletar, imediatamente, após a embevecida leitura, não gostava de deixar pistas em sua caixa postal. Até nisso ela era original e Mazinho havia ficado com verdadeiro pavor das mensagens que a outra, a Lourdinha, deixava no celular, sempre apelativas, cheias de ameaças.

Conhecera Rica há apenas quatro semanas, mas parecia uma paixão nascida junto com ele. Um dia, acordou ansioso, ligou o PC e lá estava mais uma mensagem piscando, abriu: "Nos vemos, à noite, no Hotel Jardim, tenho surpresas. Beijos. Sua Enfermeira".

Rica estava ainda mais especial, vestia luvas aveludadas até os cotovelos e um longo negro, com profundo decote e fenda lateral indo até o meio da coxa direita. No pescoço as safiras lapidadas em forma de hélice reluziam. Ela cobrira a cama redonda com lençóis de seda vermelha, contrastando com o piso e as paredes brancas do quarto luxuoso.

Logo que ele chegou foi envolvido num demorado abraço, Rica afagou seus cabelos, percorreu tateando o contorno de seu rosto e sussurrou:

- Saudades de você.

Serviu-lhe absinto e calidamente deitou-o sobre os lençóis livrando-o das roupas. Ele já antecipava o gozo. Da pequena valise Rica tirou um frasco, derramou num lenço todo o conteúdo e o fez aspirar até perder os sentidos. Com suas mãos pequenas e delicadas, esterilizou o pequeno bisturi que costumava usar para retirar as calosidades, acariciou o corpo do homem nu e numa só incisão precisa cortou-lhe o sexo. Costurou o que sobrou com cuidado, tomando todas as precauções para evitar uma hemorragia, cobriu Mazinho com um cobertor e saiu pelas escadas de incêndio para não ser vista.

Em uma esquina distante, ligou de um orelhão e apenas disse:

- Feito.

* * * * *

Osmar agora é homem caseiro, mudou muito, assiste até novela. Sua mulher não cansa de dizer para os amigos que ganhou um novo marido. Hoje ele demonstra tranqüilidade e seria exagero, talvez, parece feliz.

Seu programa predileto, às sextas-feiras, e testar receitas na cozinha projetada especialmente para a vocação que descobriu recentemente. Maria da Paz adora seus pratos.

Enquanto isso, em outra cidade, no sul do país, uma mulher lê nos classificados:

PROBLEMAS NO CASAMENTO? TEMOS A SOLUÇÃO.

 
 
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