CARTA
DE ADEUS
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Antonio
Rodrigues
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Mas
quão avassaladora, quão insensata!
Adeus, meu amor..., dizia a triste carta. Apaguem as luzes. A valsa terminou. Preciso partir. Deixo-te, amor, para levar comigo somente a saudade. Atada em meu peito, cravada em meu peito. Saudade. Foste, alma minha, a senhora dos sonhos que desde menino sonhei para mim. Sonhei. Apaguem as luzes. A vida passou. E eu não te vi. E eu não te amei. Apaguem as luzes. Não quero viver. Luzes de meu Deus, por que não se apagam? Agora entendo, oh doce mensagem que vem da esperança, dizendo não chores, poeta-menino, descansa nos braços desta solidão. Logo acordarás no leito de paz do teu gentil amor. Esperança. O que é a esperança? Parece coisa de gente confusa, adulta, gente que prefere esperar, esperar, esperar a viver. E agora eu já não quero mais escrever essa carta em segunda pessoa e como quem em vida presenciou a passagem de vinte e seis primaveras. Porque olha que sujeito tolo, trágico, exagerado, dramático! A continuar do modo como iniciou, certamente leríamos ao final algo assim: como posso dizer que já não mais te quero, como posso negar tamanho sentimento? Na tua graça moram meus pensamentos. Esquecer-te, impossível, não é mais mistério, ou, ainda, exagerando mais um pouco, como que querendo fazer alguém chorar: não cantes a canção do adeus, não me faças chorar, não me faças sofrer, amor, que a flor dos versos meus proclamarei até morrer... sem nunca te amar. Estamos falando de algo verdadeiro, mas deve haver um jeito menos doloroso de dizer adeus. Talvez não dizer fosse o ideal. Então, deixemos o trágico adulto de lado e em terceira pessoa, para justificar a precisão da escrita e, claro, a velha ausência de modéstia falemos do meu lado menino que, desde a primeira vez que a viu, sabia que se apaixonaria. Apaixonou-se. Aproximou-se o quanto pôde, o que é natural, e quanto mais a conhecia tanto mais se apaixonava (hum, essa relação de causa e efeito pouco original me persegue). Menino quando ama é assim, já vai logo abrindo o coração para a pessoa amada. Não tem esse negócio de timidez, de vergonha, de receio. Gente grande é que muitas vezes não ata nem desata. E sofre. Ele não. Quis nem saber. Rasgou as pequeninas e coloridas roupas que usava, alinhou as asas e buscou a companhia de águias e albatrozes, de corujas, de tucanos, de uirapurus. Precisava espalhar a todos os seres de todos os cantos que estava apaixonado. Nunca deixou de admirar cada crepúsculo como se fosse o último. Os tons róseos e avermelhados desabavam sobre a claridade dos dias, anunciando a presença da noite. As nuvens corriam ligeiras, conduzidas pelo vento vadio veloz viajante de um aconchegante outono. A ele pouco importava se as luzes da ribalta paulistana seriam ou não apagadas. Bastava-lhe a luminosidade das estrelas, da lua. E isso era o que de mais concreto havia por perto de seu coraçãozinho apaixonado. Sobressaiu-se seu lado contador de historinhas. Nelas, era ele professor bastante capaz de expor magnas aulas à bicharada da floresta, era ele o interlocutor dos laços afetivos que simplesmente acontecem entre as gentes, era ele narrador e personagem, e até um urso chegou a ser. Até o dia em que abriu a caixinha do correio e não havia nada. Não havia jornal, bilhete ou carta de amor que pudesse ofertar um alentado sopro de vida à sua simplória existência de criatura hibernante. Na verdade, seus ideais românticos nunca encontraram eco em você, mulher, que talvez fosse a outra metade da alma que lhe faltava. É como se ele tivesse acabado de fazer um castelinho com a areia molhada da praia e, com passinhos curtos, tortos, no estilo cai-não-cai, com um sorriso desse tamanho no rostinho e os olhinhos arregalados, fosse correndo até você, pegasse sua mão e te arrastasse até lá pra que você visse sua obra de arquiteto-menino tão trabalhada, tão inspirada... tão nada... porque você só olhou... olhou... e só. Ele já sabia que você era uma pessoa muito ocupada, a pessoa mais ocupada do mundo. Por isso ficaria contente se uma ou duas palavras saíssem de sua boca ou fossem desenhadas pela sua mão. Como não entendesse seu silêncio e porque carente de um pouco de atenção e carinho, como toda criança, provocou: vou ficar de mal, não vou mais te escrever, nunca mais, nunca, nunquinha... porque você leu o cartão e as cartas que te enviei, visualizou o castelo que ergui pra te dar de presente... e nem disse se gostou nem se reprovou... não disse nada, nadinha. Esquece tudo, foram suas palavras. Palavras, ai palavras! Antes não as tivesse dito. Antes não houvesse ele provocado. E justamente quando alçava o mais alto, o mais ousado dos vôos. Mesmo Ícaro se compadeceu da queda que a inconseqüente criança levou. Mas quem disse que o menino se abalou? Com um pouco de esforço imprimido nas asas, de um jeito todo maroto, desviou-se da trajetória que o levaria direto ao mar e pousou no cume de um grande penhasco, ao lado de uma velha águia. Com aquela nobre ave de rapina aprendeu que valia a pena, se a alma não fosse pequena (claro que essa era uma água poeta), recolher-se à solidão, ao tempo, à distância, arriscando deparar-se com o fatal destino, se fosse essa a única possibilidade de trocar o bico estragado e as plumas envelhecidas, se fosse essa a única possibilidade de poder voar por mais trinta anos no céu aberto da liberdade. É uma lição muito bonita, disse o menino, mas pra mim não tem problema ficar sem minhas asas se eu puder montar em você e voar com as suas, vai ser mais emocionante, que tal? E lá se foram eles. Esse meu inquieto lado criança já se esqueceu de tudo. Quanto a mim, voltando agora à realidade, coisa que ainda não me acostumei a fazer, prometo que vou tentar. E também não conheço outra maneira senão recolher-me à solidão de você, à distância de você... ao tempo que nunca será de nós dois. Cheguei tarde demais em sua vida... e cedo demais me apaixonei. Entre partir e viver ou ficar e morrer, oh velha encruzilhada, prefiro seguir só em meu caminho, levando vivas somente a saudade e a esperança... porque tudo o mais já morreu. Adeus, meu amor. Adeus. PS: Esse sujeitinho é fogo! Diz agora que vai embora, que vai tentar esquecê-la, que o adeus é inevitável, que isso, que aquilo... que nada! Até sei o que vai dizer quando voltar: parti porque te amava, parti porque precisava te esquecer... voltei porque nunca te esqueci, voltei porque nunca deixei de te amar, porque a saudade foi demais, a distância foi muita... desculpe o choro... não consigo... não posso.... Esquece, meu velho! Vem voar comigo! Vem voar comigo! |