Os esotéricos
dizem que pessoas extremamente apegadas a plantas e animais certamente
são bruxas ou o foram em outra encarnação. Creio que eles têm razão, pois,
coincidência ou não, minha mãe que venerava esses seres desprovidos de
inteligência possuía, de fato, alguma coisa de sobrenatural. Quando dizia:
não faça e eu fazia acabava me dando mal. Quando alertava: não confie
em fulano e eu a desafiava, logo tinha uma decepção. Isso sem falar nos
chazinhos, emplastos, infusões e lambedores que preparava com desvelo
e cuja alquimia ela costumava revelar apenas parcialmente, pois tudo era
pura intuição, nem ela conhecia as medidas exatamente, mas o resultado
era um bálsamo para toda e qualquer doença física e até emocional.
Na infância, sua dedicação à natureza me fez supor que ela gostasse mais
de suas ervas e bichinhos do que de mim, e esse sentimento recalcado revelava-se
em meus pesadelos através de figuras fantasmagóricas, habitantes de raízes
expostas de castanheiros do jardim, que levavam minha mãe para bem longe,
deixando-me só e desamparada.
A paixão que ela nutria pelos animais se desdobrava em ternura, emocionava-se
até com insetos, inclusive os peçonhentos, achava tudo uma gracinha, verdadeiras
obras de arte. Em minha casa não se matavam formigas, besouros, lagartixas,
aranhas e sapos tampouco, minha mãe não permitia. Todo e qualquer arbusto
que crescesse ao acaso, mesmo os desprovidos de beleza e utilidade, eram
respeitados, regados, adubados e tinham a poda merecida para o fortalecimento
dos galhos e o direcionamento correto do tronco. Era comum vê-la cuidando
de cães e gatos abandonados, justificando assim tal atitude:
- O bichinho está judiado, morrendo de fome e sede, como essa gente pode
fazer isso! Vocês irão ver, ele será mais fiel do que muito amigo.
Ou então replantando mudinhas arrancadas na capina dos quintais vizinhos:
- Imagina! Elazinha (a plantinha) ia morrer ali, atirada sem terra, suas
folhinhas parecem ser de mangueira ou quem sabe de cajazeiro, sintam só
o perfume?
Na casa ao lado, entretanto, a vizinha Dª Albanita nutria verdadeiro horror
por tudo aquilo que significasse barro, perninhas, plumas, pelos e excremento.
Para ela o chique, o higiênico era um quintal cimentado, verde só grama
inglesa, animais, só em fotografia, ela os queria à distância. Assim,
o confronto entre as duas era inevitável, muito embora se entendessem,
perfeitamente, em outros assuntos.
Enquanto minha mãe se aninhava num dos galhos da velha jabuticabeira a
colher frutos para o preparo da geléia, a vizinha sentava no banco de
ferro do seu jardim gramado a pregar sua filosofia urbana, tentativa inútil
de mudar cabeça da outra:
- Sabia que se o pinheiro ultrapassar a cumeeira da casa o marido morre?
Mamãe respondia:
- Não diga, de repente é por isso que tanta gente planta essa árvore!
Dª Albanita continuava:
- Abacateiros e jaqueiras atraem raios, são perigosíssimos!
Mamãe, logo acrescentava:
- Ainda bem que temos o enorme pára-raios da fábrica, no final da rua.
Desesperada, Dª Albanita apelava:
- Virgem! Arranca logo essa árvore roxinha de seu quintal, é plantar uma
e a família cai em desgraça!
Minha mãe tripudiava:
- É, graças a Deus não fui eu quem plantou, ela brotou aí sozinha!
Apesar disso, Dª Albanita não cansava de repetir a ladainha. Nela as inocentes
goiabeiras eram hospedeiras de morcegos e lagartas. Laranjeiras e flamboyants
tinham espinhos, jurava conhecer três ceguinhos vítimas desses malditos
arbustos, isso sem falar das inúmeras casas de amigos que vieram abaixo
em decorrência de raízes nos alicerces ou de galhos desprendidos durante
tempestades.
Gatos causavam asma, cães doenças inimagináveis sim, eram também violentos,
em bando pareciam lobos, trucidavam suas vítimas. Sapos cegavam, lagartos
queimavam e mutilavam, borboletas davam alergias, aranhas e besouros possuíam
venenos letais.
Obviamente, minha mãe respondia à altura, também era farta em argumentações,
desde a purificação do ar à adubação do solo, da beleza das flores e frutos
ao perfume que exalam, do alimento sadio à constatação espiritual de que
todos os serem são igualmente filhos de Deus e como os humanos merecerem
a vida. Assim, enquanto uma enaltecia a harmonia sinfônica do ninhal,
a outra reclamava da titica que as aves deixavam no cimento e das folhas
que sujavam o quintal.
Vez por outra mamãe perdia a paciência, mas dobrava a língua para não
xingar Dª Albanita de figueira do inferno (ela não teve filhos) ou de
urubulina, já que o passatempo predileto dela era comparecer em velórios,
sepultar amigos e assistir a missas de defunto. Aliás, Dª Albanita não
conseguia esconder a satisfação ao receber a notícia do falecimento de
alguém. Doenças incuráveis também lhe davam prazer imenso e se visse alguém
tossindo, logo aventava a possibilidade de alguma doença contagiosa ou
mesmo um câncer.
Há quinze anos minha mãe sentiu uma pontada no peito, foi ao quintal para
respirar ar puro, escorreu os dedos nas serpentinas de avencas, acariciou
os pelos do cachorrinho xexéu, sentou-se ao lado da velha jabuticabeira
e nunca mais se levantou, ali se despediu do mundo, ainda jovem e cheia
de sonhos.
Dª Albanita já está bem idosa, ainda mora na mesma casa. A de minha mãe
foi vendida e no lugar um prédio foi construído, da vegetação de antes
sobrou apenas um dos castanheiros, que Dª Albanita não sossegou enquanto
não o viu podado, até sobrar-lhe apenas o tronco retorcido que nunca mais
brotou, mas continua em pé como se esperasse uma porção de vida.
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