Estou no Sul,
precisamente em Passo Fundo, lugar onde pedir um cacetinho não é falar
em um órgão sexual masculino de tamanho reduzido, e sim pedir um pãozinho
na panificadora. É um Brasil longe, de expressões diferentes onde fazer
o rancho é ir ao supermercado para comprar os suprimentos básicos.
Um lugar frio, mas de pessoas com bochechas rosadas e com muito calor
humano. E cuidado! Ao dirigir um carro aqui, se você causar uma colisão
com um veículo você não deu uma batida, aqui se fala pechada.
Na hora em que ouvi a expressão pensei em um pescador mais desaforado
batendo com um peixe em alguém. São sutilezas de cada região e que incorporei
rápido à minha comunicação diária. Capaz! Bá! Tchê! Tri-bom! Tu! Estou
me sentindo tão gaúcha que não paro de usar essas palavras. E posso fazer
isso, pude conviver com elas durante um bom tempo e as incorporei ao meu
vocabulário.
Preciso contar como é estar numa Disneylândia de Escritores,
onde a atração é a fala, os livros, a arte e o convívio com essas mentes
tão brilhantes. Tenho que dizer que cheguei aqui e fugi do hotel que estava
reservado com a mala aberta e os sapatos na mão. Vou confessar um roubo
também: peguei uma coleção de livros que estava no quarto do hotel de
que saí e que foi editada especialmente para esse evento. Me tornei uma
peregrina de quarto, e por conta dessa adversidade, não houve uma só pessoa
que não tenha conhecido. O hotel dos Escritores estava um formigueiro
e absolutamente lotado, mas cismei que ia ficar lá e não aceitei a frase
não temos vaga como resposta.
Não devo ser tão linda como uma miss e nem tão feia e sem atrativos que
não merecesse convites de toda ala masculina. Dormi a primeira noite com
uma produtora de poetas e aí começei a receber bilhetes do hotel com a
expulsão. Ela foi embora no dia seguinte e seu quarto seria ocupado por
outra pessoa. E com a mala aberta de novo e fugida como uma retirante
prometi não arredar o pé dali. Saí tão corrida que horas depois recebi
da camareira meu pijama esquecido debaixo do travesseiro, já em outro
quarto.
No jantar, as brincadeiras de um escritor por cujas palavras me apaixonei,
chamado Alcione Araújo, que guardou minha mala em seus aposentos falou
com o não menos apaixonante Ziraldo.
- Essa aqui é uma jornalista de Campinas e está sem quarto, desabrigada
e sem teto, você pode hospedá-la?
E Ziraldo, com aquele sorriso lindo, aquela simpatia só dele, disse:
- Minha querida tenho 70 anos, esqueci o viagra e você pode ir para o
meu quarto sem susto, não vai acontecer nada.
Com todo o vigor que vi na figura do Ziraldo, sei que ele não precisa
de viagra nenhum, e embora morta de vontade de aceitar o convite pra dormir
em companhia tão ilustre, ainda continuei minha busca por uma cama só
minha. Achei abrigo com uma escritora e professora da USP - Ana Mei, que
aceitou compartilhar seu quarto comigo. Quando sentei na cama, aliviada,
pensei: enfim tenho um teto agora. Então ouço uma batida e uma camareira
me pede para assinar uma ordem de serviço. Assustada como estava, pensei
"Meu Deus, devo ter assinado uma ordem de expulsão de novo".
Descobri rápido que era apenas uma gentileza da minha companheira de quarto.
O papel que assinei era só uma ordem de serviço de solicitação de cabides
extras. Um gesto tão delicado de atenção do qual nem cheguei a usufruir.
Minhas roupas ficaram todas na mala, mas guardei o carinho da recepção
de minha nova amiga, que aceitou compartilhar seus aposentos comigo.
Fiquei no lugar onde queria estar, rodeada de escritores por todos os
lados. Encontrei o grande escritor chileno Antonio Skármeta,
autor de um dos livros mais poéticos e tocantes que já li, O carteiro
e o poeta, no hall do hotel, sozinho e mesmo sem falar nenhum idioma
direito me aventurei a travar conversa. Ele me deu toda atenção, falamos
todos os idiomas juntos: inglês, italiano, espanhol, francês e alemão
para que ele conseguisse me entender. Ele deve ter notado minhas mãos
trêmulas e meu olhar embevecido por sua presença tão próxima. Sua dedicatória
no livro que comprei As bodas do poeta foi linda, para alguém
que sabe apenas pronunciar poucas palavras em cada idioma :Rosi
Luna! La más poliglota e encantadora de mis lectoras! Com cariño. ASkármeta.
2001.
Não quero esquecer nenhum escritor... zap zap zap 1 2 3 4 foram tantos
que não dá pra citar o nome de todos. Viajei com a Martha Medeiros, e
o Ignácio Loyola, que achava com um jeito turrão e sério, é uma figura
super simpática e me contou o fim do seu livro Veia bailarina,
fiquei de mandar minha crônica O peixe bailarino. Salim Miguel,
Antônio Torres, Affonso Romano, Marina Colasanti, Carlos Nejar, Renato
Tapajós, Deonísio da Silva, Mano Melo, Abel Silva, Ricardo Silvestrin,
Ruth Rocha, Ziraldo, Frei Beto, não dá pra lembrar os nomes, uma fila
de mais de cem pessoas entre escritores, mímicos, poetas e artistas.
E não posso esquecer o rosto alegre da mentora de tudo isso, sempre sorridente,
até no horário da nossa partida às cinco horas da manhã, a Tânia Rösing
- que montou seu sonho da Jornada Literária numa lona de circo e lotou
com mais de quatro mil pessoas.
Preciso só descrever a cena que ninguém viu mas todo mundo vai sentir
a emoção comigo. O Alcione Araújo é um escritor daqueles em que o fator
humanidade pesa mais que tudo. Ele tinha acabado de dar uma entrevista
para umas estudantes e pude ver a moça loira chorando com o gravador na
mão e o escritor derramando uma lágrima sentida quando falava da fome
no Brasil. Gravador desligado, coração apertado.
Chega uma garota de dezessete anos com o nome Wanderléia, com os olhos
cheios de lágrimas e falando passagens do livro Nem mesmo todo oceano
do Alcione, um livro tão grosso como o último livro que li Crime
de castigo de Dostoiévski . O escritor olhava incrédulo, como uma
garota tão nova poderia estar lendo e ser apaixonada por sua obra. Ela
contou com riquezas de detalhes cada passagem do livro. Eu ali, expectadora
da cena juntamente com as meninas da entrevista anterior. Olhávamos a
candura do encontro de um escritor e uma leitora. Segurava minhas lágrimas,
pois tinha medo de que minhas lentes de contato saíssem nadando com o
acumulo de água nos meus olhos. Mas a sua ultima fala desarmou todos nós.
A menina disse Olha, adorei seu livro, li todo e vim de outra cidade
só para te conhecer. Eu li seu livro emprestado, não tenho dinheiro para
comprá-lo".
Nós nos abraçamos numa rodinha, escritor e leitores juntos, numa comunhão
de sentimentos. Nem me lembrei que ia perder as lentes de contato no choro
compulsivo. Nunca tinha visto um escritor chorar abraçado a um leitor.
Choramos todas as lágrimas que encontramos nesse Brasil sem dinheiro,
com fome de cultura, de leitura. Isso é fundo... muito fundo, é um poço
fundo de uma dor da impotência de não poder dar livros a quem quer ler.
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