OLHO DE SANGUE
Luís Valise
 
 
Freqüentemente não estou onde deveria, como quando dirijo, por exemplo. Meu olhar está à frente, minhas mãos estão no volante, mas a cabeça, ah!, a cabeça vaga por aí, refazendo momentos passados, refodendo amores perdidos, vivendo todas essas vidas insuspeitadas que trazemos dentro de nós e que nos ajudam a suportar a vida real, feita de mentiras e televisão. E então quem estava ali era somente minha carcaça sonâmbula, guiando no trânsito infernal da grande avenida, enquanto meus pensamentos iam da bunda que passava na calçada aos planos de lançamento de um novo produto. Bundas diferentes, novos produtos: um dia todas as coisas acabam sendo as velhas mesmas coisas. Ai, meu saco, esse trânsito não anda, vou acabar perdendo o começo do jogo! Blécblécbléc abre logo essa porra, Mané!

Através do vidro, a dois palmos da minha cabeça, um olho preto e inexpressivo me encara. Um olho encaixado num bloco de aço azulado, preso na mão áspera e nervosa que bate de novo contra o vidro bléblécbléc, escuto outra vez abre, porra!, ergo os olhos e vejo o marginal. Na verdade imagino mais do que vejo, porque minha mente ainda registra o olho escuro e inexpressivo que eu sei que a qualquer momento pode piscar, e aí um abraço. Ele esbraveja, vejo sua boca se movendo em câmera lenta, sons distantes daquela voz que diz qualquer coisa Mané, porra Mané, e eu, ainda com o olho preto na cabeça, abaixo de novo meu olhar, e o olho balança, chacoalha, bate no vidro. Alguém disse pra nunca reagir. Acho que foi na televisão.

Eu sou um craque pra ver televisão. Consigo ver vários programas ao mesmo tempo, o controle remoto na mão como um Taurus frenético apontado para a tela, detonando frases, caras, paisagens. Minha mulher desiste de acompanhar a geléia-geral e dorme, e sonha.

Em volta, o mundo congelado. Nada se move, não existem sons, apenas um distante porra Mané!, que eu nem sei bem o que é. Minha mão direita vai em direção à alavanca de marchas e põe ponto-morto. Carteira! Relógio! Mané! Olho de novo pro dono do olho e vejo o pavor em seu rosto. Quando ele ordena na verdade ele está implorando. Ele sabe melhor do que eu que do olho preto pode sair uma língua quente e alaranjada que vai abrir um buraco no meu rosto e ele vai de novo correr como um desesperado pra lugar nenhum, meu rosto com um buraco preto dormindo para sempre com ele.

Não faça isso! Essa voz vem de dentro de mim. Pára, Mané! Essa outra vem de longe, eu nem sei quem é Mané, eu sei quem é o olho escuro e inexpressivo e não gosto dele me olhando, por isso minha mão se move em direção à maçaneta, começo a abrir a porta do carro, vou saindo, e o olho não cospe sua língua alaranjada. Ele sobe e desce com força na minha testa, abrindo um corte feio. Eu sinto o sangue. Eu quero o olho. A cara do marginal está desfigurada pelo medo. Ele TEM que atirar. Levanta o braço. Estica. Aponta. Eu saio da letargia e como um raio seguro o bloco de aço azulado com um olho no meio. Puxo com toda a força, ele resiste, rolamos no chão. Consigo arrancar a arma da mão do puto e logo enfio o grande cano com o olho preto em sua boca. E agora, quem é Mané? Responde, filho-da-puta, quem é o Mané agora? Aperto o gatilho três vezes. No asfalto negro surge uma grande mancha vermelha salpicada de pedaços brancos de cérebro. Já me preparava pra comemorar meu renascimento, quando um par de tênis pára perto da cabeça destroçada. Compreendo porque não devia reagir. O comparsa. Coisa ruim não anda só. Escuto a voz que vem de cima: - Vou te foder, Mané! Ouço o click da arma sendo engatilhada. Penso na minha mulher dormindo em frente da televisão. Olho pra cima pra ver a língua quente e alaranjada. O cara era muito burro.

Ele quis dar o tiro à queima-roupa. Ao erguer a cabeça desviei a ponta do cano do seu revólver. O tiro saiu, a língua queimou-me o couro cabeludo, o barulho criou uma espécie de vácuo. A bala achatou-se no chão, perto do meu pé. Eu estava ajoelhado. Levantei o braço e encostei o olho escuro e inexpressivo debaixo do saco do infeliz. Meu dedo espremeu o gatilho e os joelhos do cara começaram a dobrar antes que ele ouvisse o barulho do tiro. Foram dois tiros em azimute, as balas rasgando tudo de baixo pra cima, não sei onde foram parar.

Logo, dos outros carros, surgiram outros ases do controle remoto, que só faltaram me carregar em triunfo. Legítima defesa. Simples mudança de canal.

 

 
 
fale com o autor