ROLETA RUSSA
Jorge Silva
 
 
Estou sentado no sofá, atordoado. Dei um chuto bem violento na lata vazia de cerveja, numa delas, e descobri de repente duas realidades dolorosas.

A minha vida está concentrada no comando da televisão, escondido atrás da lata, vida real, porque as vidas dos outros ali retratadas não são diferentes da que escolhi para mim. Todos iguais, irmandade, vegetais em decomposição. Essa doeu. E a lata estava cheia, afinal.

Sorte malvada, peguei outra vez no aparelho forradinho de botões. Monitor iluminado, tela colorida por talentosos produtores. De imagens. Para mim, telespectador interessado, encafuado, numa sala blindada às influências do exterior. Realidade numa bandeja, servida fria como vingança das ruas de que fugimos, nossos medos e fobias, manias. Está tudo ali, o freguês que decida, que carregue num botão. E assim comanda a vida, coisa que lhe é proibida , lá fora, nesse urbanismo hostil que nos empurra para diante, cataclop, atrás da cenoura que descobrimos tarde demais ser a miragem desfocada de uma desvanecida ilusão. Que porra...

Mas já que aqui estou, vou zapar um bocadinho. Hoje estou sozinho e isto distrai uma pessoa, cabeça longe daqui antes que a pressão do pensamento, corrimento de ideias vagas num encéfalo em implosão, a faça explodir, saltar-me a tampa. Da caixa de pandora, cliché, esqueletos nos armários, pedaços de uma pasta viscosa espalhados pelas paredes da sala e na alcatifa que ainda ontem limpei. Coisas sujas na mioleira que nos atropelam a consciência, o animal em cada um. Vou mudar de canal. Mais fácil do que isto...

Eis-me então transportado, conectado ao aparelho, virtualmente hipnotizado pela magia do televisor. Os coelhos, bichos marotos, multiplicam-se bem depressa. Está a dar no Odisseia, a cartola mesmo cheia e a coelhada a brotar. Ilusionismo. Não sei se levite ou me limite a desaparecer, a cerveja fresca acabou e o dedo mindinho do pé lateja, sangrento. O comando à distância é um fraco equipamento, muito cheio de limitações. Ou nem por isso, pois zapei para outro lado e ela lá está, fresquinha, ao alcance de cada consumidor potencial. Publicidade. A toda a hora, isso é que irrita. Bombardeiam-nos sem misericórdia, verdadeira lobotomia, consome cidadão! E nós consumimo-nos, de facto, à procura da tal cenoura que não fez vinte anos estava logo ali. Ao virar da esquina. Fantasia dourada, lantejoulas. O dinheiro que nos sustenta ambições desmedidas, nos endivida e atormenta. A tormenta é viver.

Ouço vozes distantes, mudei outra vez. Película desbotada, a preto e branco, amores antigos e puritanos, beijos postiços e falso pudor. O mundo não era tão diferente assim, nesses dias.

Eu zapo e rezapo, saltito entre programas, nada prende a atenção. Ópera e futebol, moda e rock & roll, novelas intermináveis, criaturas abomináveis. E sem querer já versejei. Na adolescência acreditei-me poeta, talhava versos na madeira carcomida do tampo da carteira onde sonhava acordado e nada aprendia. Porque não gostava de estar ali. Aqui já estive melhor, mas calhou fartar-me de mim. Como os outros se fartaram.

O ecran não desdenha, a audiência é raínha, monarca destronada do principado da estupidez. A independência acabou e se existe soberania é no rosto do comando e no gesto de premir a gosto um simples e disciplinado botão. Subserviente como um candidato a gerente na visita do patrão.

Fico muito perturbado, nestes serões de elevada alcoolémia, quando as dezenas de opções se conjugam como sedativos letais e nos enfadonham demais. Até à exaustão.

Horror! Fui parar ao noticiário, onde a vida é aziaga e medonha, as coisas acontecem à minha volta macabras, guerra, fome, todo o tipo de tragédia, desastres e afins, estatística arrepiante de um planeta em convulsão. Morre gente a toda a hora, mesmo ao pé da minha porta. De saída, para o refúgio sagrado onde me escondo e atrofio. Sem ideias, vazio, com ganas de morrer.

Carrego furioso na merda do botão, quero sair deste catálogo infernal de atrocidades que me deprimem, bem depressa. Por favor...

Carrego, mas não consigo zapar. Pesadelo. Encosto o comando a um dos lados da cabeça e primo o gatilho, a loucura à minha beira, não consigo aguentar a dor. A dos outros e a minha, o pé já inchou como um balão, arroxeado, bichos pretos por todo o lado, julgo estar em delírio. A existência é um martírio e eu não lhe posso escapar. Estou preso de movimentos, polegar paralisado sobre um botão que não actua. Uma bala no carregador, o tambor já rodou muitas vezes e deu a volta por completo. Paralisa, indicador! ZAP!

A pilha do comando acabou.

 
 
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