Z A P
Fernando Borba
 
 
Coisa incrível aconteceu com meu avô materno.

Na juventude ele prometia: estudante de direito, já trabalhando num bom escritório, quase noivo de uma coleguinha, era a esperança da família. De repente, sem mais nem menos, desapareceu. Abandonou a casa, a faculdade, a namorada e os amigos, e, assim, foi dado por morto durante muitos anos. O que sucedeu, como veio a se saber depois, é que ele foi morar numa praia deserta do Nordeste (naquele tempo havia terras sem dono) onde mais tarde conseguiu o domínio de uma área, a que ele chamava sua enseada. Ali construiu nova vida, tendo se registrado com o nome esquisito de Giovanni Boccaccio. Depois fez uns negócios nebulosos e a propriedade sumiu, misteriosamente. Dele, minha mãe só herdou um grosso caderno de capa dura, do qual copiei estes trechos:

"A mulata Luzinete acaba de me trazer o desjejum, um alguidar com frutas. Ah, as deliciosas frutas da minha enseada! Os moradores se abismam, vendo-me comer de garfo e faca, eles que se lambuzam com os mamões, as mangas, as melancias. Deve ser até mais saboroso, eu é que nunca me libertei da maldita civilização de minha juventude."

"Setenta anos hoje. Gozo de uma paz como nunca. A maré vai enchendo, já aparecem pequenas marolas ao sol da manhã. Os homens se atarefam arranjando as jangadas, os covos. Muitas mulheres, agachadas na vastidão da maré vazia, estão desencavando mariscos da areia."

"Minha enseada! Mil metros de beira-mar por outros tantos para dentro, até a rodovia. Praia branca, águas transparentes e quietas, um arrecife para quebrar a força do mar. Peixes, lagostas, crustáceos em abundância. Ali à direita a falésia escarpada, subindo das ondas até o chapadão plano. Embaixo, aquelas ruínas de uma igrejinha antiga, que ainda me surpreendem. De que época seriam? Um pedaço de matinha cerrada, fruteiras, um roçado, a nascente de água pura, o riachinho que desce em diagonal, fechando a propriedade pela esquerda. Tudo muito bem cercado. A escritura sem qualquer dúvida, pois o processo de usucapião foi incontestável."

"Aqui na praia, a pesca bem organizada, a balança ao lado desta caiçara de palhas que é meu escritório, onde dirijo tudo e recebo o produto das vendas, e que é minha sala do trono - aqui eu dirimo questões, recebo visitas, os moradores vêm me tomar a bênção, pois sou o padrinho de todos. Aqui minhas afilhadas vêm me prestar, sem saber, uma linda vassalagem, quando exibem com naturalidade seus corpos acobreados..."

"A maré está subindo. Ao longe vejo as meninas gêmeas, que devem estar pelos dezoito anos. Cabrochas de cabelo escorrido, pele cor de pimenta-do-reino, os seios estufando o vestido de algodãozinho, as coxas estourando a costura. É de vestido mesmo que elas tomam banho de mar. Outro dia, fui andando até elas, me receberam a uma só voz: 'A bênção, padrinho!'. Fiquei boiando de costas, não tinha mais que meio metro de água morna, elas brincando em volta. Cosma se assustou com um siri e deu um gritinho. Sentei-a no colo, segurei suas pernas, protetor. Murmurei umas bobagens ao seu ouvido, beijei seu pescoço, ela se contorcia, dengosa. Desabotoei devagar o vestido, os seios pularam feito dois salmonetes rosados, vivos. Damiana se afastava, boiando na água mansa."

"O maior sinal de minha monarquia, além de ser o dono de todas as coisas, é que há muito ninguém me aborrece. Minto: existem os pretensos compradores da enseada. Alguns são tão vigaristas que tenho vontade de corrê-los a pauladas." No entanto, diferente deles é o dr. Rômulo, o executivo de terno e gravata, educadíssimo, pedindo licença para sentar nos tamboretes da caiçara, para levantar, para tomar a palavra. Apresenta com clareza as propostas da empresa multinacional de empreendimentos turísticos em que trabalha. Ouve minha recusa, desculpa-se e se retira. Já esteve aqui duas vezes."

"Dr. Rômulo veio mais uma vez. Estava acompanhado de um advogado, um contador e a Doutora Sofia, Agente Especial de Contatos. Assim que a vi, pensei: 'Que linda menina loura!' Indiquei os tamboretes em volta da mesa, sentaram. E me ocorreu a grande semelhança entre ela e minha antiga paixão, a minha linda coleguinha da faculdade... Notei quando os olhos azuis de Sofia pareciam sorrir, muito abertos e límpidos, ao abarcar a curvatura da enseada, ao longe. Senti o perfume tão meu conhecido, que me revolveu cinqüenta anos de memória..."

"O dr. Rômulo fez a proposta que a empresa lhe autorizou. Querem comprar a enseada por uma parte à vista e umas poucas parcelas, em dólares (é bastante dinheiro, devo admitir.) Imediatamente eles começariam as obras do complexo turístico, no qual, depois de inaugurado, eu terei passe permanente para uso gratuito do hotel, dos restaurantes e bares, do cassino, de toda a estrutura de lazer. Ganharei ainda dois bangalôs, em meu nome. Terei os campos de esporte, a marina e as lanchas à minha disposição. - 'Uma nova vida, cheia de conforto, tranqüilidade e divertimento, sr. Giovanni' - disse o dr. Rômulo. Balancei a cabeça, em negativa. Eles não compreendem o que é ser mais que um rei num paraíso. Então, a dra. Sofia levantou do tamborete com a graça de uma rainha erguendo-se do trono: 'Eu gostaria de conhecer melhor a sua propriedade, sr. Giovanni. Poderia guiar-me, se não for pedir muito?"

"Jamais esquecerei cada minuto daquele dia glorioso. Na praia, Sofia tirou os sapatos de salto e os jogou fora. Hesitei, ia precipitar-me para os sapatos, mas ela me deteve: 'Alguém os apanhará depois, sr. Giovanni.' - Desatou os cabelos, que desceram como uma tarrafa dourada até as omoplatas. - 'Que cheiro maravilhoso de mar, de luz, de vida!' disse, abrindo os braços. Fomos andando em direção à falésia. Sofia correu pela areia molhada, chutando os pequenos tufos de algas brilhantes."

"Chegamos às ruínas da igrejinha. Ela escalou os pedaços de cantaria caídos no meio das ervas, contornou os restos de paredes cobertos de urtigas. Uma parte da fachada erguia-se, refletindo a luz do sol em sua pátina esverdeada. No alto havia um medalhão com inscrições em relevo. Ela decifrou aqueles símbolos antigos: 'Uma capela de Nossa Senhora dos Navegantes, do século dezoito! Sabe que é minha santa protetora?' - Entramos no que tinha sido a nave da capela, chegamos ao altar. Através de uma seteira na parede víamos a falésia a pino contra as ondas, brilhando ao sol. - 'Que coisa absolutamente linda. Toda essa beleza tem de permanecer para sempre. Perdão, sr. Giovanni, não é uma crítica, mas esta capela deveria ser restaurada'. - 'Não sei como fazer isso', eu disse. Olhei para a moça com encantamento, vendo-a destacar-se com um brilho de ouro puro entre as pedras gastas e as madeiras apodrecidas. Envergonhei-me de minha velhice, de minha figura pesada, que parecia uma parte daqueles destroços. - 'A Empresa poderá fazer a restauração facilmente', ela respondeu.

"Eu queria saber mais sobre aquela ninfa maravilhosa. 'Qual a sua formação universitária, dra. Sofia?' - 'Sou formada em Marketing e em Administração de Empresas. Tenho cursos de Publicidade, Turismo, línguas, essas coisas necessárias ao meu trabalho.' - Cedi à tentação de parecer brilhante e soltei: 'Publicidade, Marketing... São um gigantesco insulto à inteligência das pessoas. A arte de enganar, empacotada em papel luminoso.' - Sophia me olhou sem qualquer surpresa: 'Sabe que concordo quase completamente? Mas, nesta vida, quem não engana alguém? Por interesse, por comodismo, até mesmo por piedade. A propósito, a quem queria enganar quando adotou esse nome de Giovanni Boccaccio? Acredita mesmo que os moradores devem permanecer analfabetos toda a vida? Que devem trabalhar só pela comida e pelo privilégio de morar na enseada?"

"Perguntei quem dissera aquelas coisas sobre mim. - 'A Empresa tem um levantamento completo a seu respeito. É uma rotina que se faz com grandes clientes em potencial.' - Tínhamos chegado à beira do mar. Sofia colheu guajirus vermelhos no meio das ramas que acarpetavam a areia. De repente, tirou o vestido e correu para a água. Senti umas pontadas que me arrebentavam o coração. Ela chapinhava nas ondas e gritava com a alegria de uma criança. Afinal, voltou. Vinha em passos lentos, fazendo escorrer o cabelo molhado entre as mãos e sem tentar esconder a sua seminudez: o espetáculo mais deslumbrante que eu já tinha visto em minha vida."

"Foi quando decidi contar-lhe a minha história. - 'Há cinqüenta anos, tive uma razão muito forte para largar tudo, viver aqui e trocar de nome. A mulher que eu queria me enganou e preferiu alguém mais rico e brilhante. Abandonei aquela sociedade mesquinha, e só resisti graças à nova vida que construí na enseada. Apoderei-me desta área abandonada, registrei-a para mim. Achei que não devia modificar a sociedade primitiva e ingênua dessas pessoas simples. A enseada é um paraíso. Tudo aqui é coletivo, não há preconceito, ganância ou ódio. Esse povo é superior ao comércio, alheio ao dinheiro, anterior ao capitalismo. Curioso é que minha antiga noiva me abandonou com um fruto meu no ventre, e nunca mais nos vimos."

"Ela era linda e loura como você, tinha quase a sua idade, seus olhos azuis. Esse perfume... é o mesmo que ela usava, e que eu não sentia há tantos anos. Se eu fosse um crente, diria que você é a reencarnação dela.' - Naquele momento, Sofia disse as palavras mais inesperadas e maravilhosas que eu poderia ouvir: 'E por que não acreditar? Sempre sonhei com este instante. Este lugar é mágico, Giovanni. Desde que cheguei, sinto uma atmosfera de sonho e irrealidade, sinto que os tempos se cumpriram.' - Ela me olhou com um brilho mais azul e acariciou meu rosto. - 'Talvez seja uma bobagem romântica, mas é uma premonição tão grande que devo confessar. Desde criança, sonho que me casarei, um dia, diante de Nossa Senhora dos Navegantes. Meu noivo, no sonho, é um homem selvagem e delicado, bem mais velho que eu. Gosto de homens mais velhos."

"Passeamos até o entardecer. Matamos a fome com as frutas que encontrávamos pelo caminho, a cada passo. No riachinho de águas irisadas, Sofia me abraçou e mergulhamos juntos. Fizemos todo o itinerário das fruteiras, da mata. Sofia coloria a boca com a explosão das amoras maduras, e depois pintava meus lábios com seus beijos cor de vinho."

"Ao voltarmos para a caiçara, tinha ficado certo que eu venderia a enseada. A Empresa se comprometeria com um projeto ecológico, sem alterar a paisagem. Os moradores permaneceriam, formando uma colônia de pesca. A igrejinha de Nossa Senhora dos Navegantes seria restaurada. Como um segredo nosso, nós nos casaríamos e viríamos morar num dos bangalôs do complexo turístico. Dr. Rômulo festejou com alegria o nosso acordo. Passei uma procuração com totais poderes para Sofia, que fará o contrato, assinará a escritura e receberá os pagamentos. A ida ao cartório me encheu de aborrecimento e terror. Eu não consigo mais conviver com a vida lá fora. Deixarei tudo nas mãos de Sofia.

"Os últimos dias têm sido de aflição e desespero. Sofia nem o dr. Rômulo apareceram mais por aqui. Pessoas estranhas se estabeleceram na enseada, as máquinas começaram a atulhar a praia. Perguntei por Sofia ao funcionário que veio notificar os moradores para a desocupação, ele disse que não a conhecia."

"Caminhões manobram abalando o chão das casinhas. Os tratores arrastam as palhoças como se fossem caixas de papel. Houve uma permissão especial para que minha casa não seja logo demolida. Os moradores mais rudes têm de ser contidos à força, como feras desesperadas defendendo seus espaços. A Empresa cercou a enseada com arames e colocou seguranças armados."

"Durante esses dias tenebrosos, cresceu o meu desespero. Eu vivo perambulando por notícias de Sofia. O engenheiro que está implantando o canteiro das obras me revelou: 'A moça que o senhor chama Sofia foi promovida, mudou-se para Nova Iorque, está indo trabalhar na sede da Empresa. Ela é a executiva de contatos mais eficiente da ZAP Enterprises."

"Estou muito cansado de tudo isso. Venho procurando, há anos, movimentar na justiça o processo contra a multinacional. Dizem que não tenho prova alguma. A corrupção é invencível. Só quem já enfrentou, sabe o quanto é difícil."

 
 
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