RUÍDOS COMPATÍVEIS
Beto Muniz
 
 
A praça não chega a ser glamourosa, porém, há um quê de nostalgia no ar. Sob suas sombras usuários cativos encenam esnobes transeuntes acidentais, traem-se ao cumprimentar uns aos outros como se passeassem numa São Paulo da década de quarenta. Loucos e desempregados observam o passeio de senhoras aposentadas do serviço público federal e seus cães caquéticos diarréicos nas calçadas. Elas recolhem, é verdade, são da velha guarda afinal. Civilizadas enfim. Praça Marechal Deodoro.

Por todas as peculiaridades metropolitanas do local, aquele pequeno espaço verde não deveria existir. Aliás, ele sobrevive só para contrariar todas as probabilidades. A praça é um espaço retangular na região central da cidade. Suas fronteiras são delimitadas por asfalto ou concreto, entretanto, e apesar do trem metropolitano linha leste-oeste circular embaixo dos seus canteiros, ali estão preservadas algumas dúzias de grandes e centenárias árvores. A estação do metrô fica num dos extremos e o comprido canteiro de gramas é cortado ao meio pela avenida Angélica, formando duas pequenas praças em uma. Em toda sua extensão norte ela faz divisas com a avenida São João e na horizontal sul com a Rua das Palmeiras. Acima da praça foi construído o minhocão - ele quem fez! A grama é bem cuidada, uma pequena quadra de futsal no extremo leste. Alguns bancos, as muretas dos dois canteiros também servem de assento aos desempregados e loucos. Nenhuma flor, apenas as palmeiras imperiais embelezam o parquinho de areias na divisa oeste. Um entrelaçado de arames cercando o quadrado de areia impede que as crianças saiam do parquinho diretamente para a Rua Albuquerque Lins. O túnel para a estação do trem metropolitano fica na calçada oposta.

Estáticos na praça há uma cabine de polícia, e também duas estátuas. A maior, enorme, do Doutor Luiz Pereira Barreto e a outra dum indiozinho segurando um tamanduá. Pelo porte deve ser Bandeira. O tamanduá.

Com a descrição que faço, pretendo que o leitor possa idealizar a praça como a mais autêntica representação da orquestra urbana: Carros, metrô e ônibus cruzando o local por cima e por baixo, buzinas e freadas em sinfonia com os jovens desocupados com a bola, crianças gritando na areia. Camelôs vendendo água, balas, doces e abacaxi, velhos disputando no dominó, pombos arrulhando enquanto sujam o doutor, o indiozinho e também o tamanduá. Mendigos roncando nos bancos, pardais brincando na grama. Todos os sons combinam com a paisagem, até o som inaudível dos meus passos - sou mero observador da essência paulistana, combinam com o silêncio pensativo dos desempregados. Tudo em perfeita sinfonia com o cenário, menos o pintassilgo. Sim, pasme! Um inusitado pintassilgo canta alegremente e seu trinado sobressai a freada brusca do carro e ao ruído ensurdecedor que o metrô emite através dos respiros existentes no canteiro oeste. Eu não o vejo, mas o encanto canoro é distinto entre os gritos dos moleques na areia ou aos berros dos jogadores sem camisas, também aos gorjeios dos pardais e ao apito do policial que auxilia as velhinhas com seus cães nos semáforos.

Os usuários cativos da praça estão surdos ao canto do pássaro, ninguém titubeia um segundo sequer diante da alegre manifestação do pintassilgo, nem mesmo os desempregados que tudo captam. Apenas eu, antigo morador da zona rural de Minas Gerais, percebo o canto diferenciado destoando dos sons urbanos e começo procurar entre as folhas e galhos, a ave de cara vermelha, nuca negra e asas amareladas.

No primeiro dia, surpreso, fico horas de cara pra cima perscrutando o verde atrevido das árvores. No entanto, além das dezenas de pardais, vejo apenas o cinza concreto do elevado Costa e Silva. O minhocão. Nos dias que se seguem volto à praça e insisto em visualizar o pássaro, mas minha teimosia não é premiada. Não o vejo, só ouço. Ele está lá, nas copas das árvores, cantando todas as tardes tentando vencer o caos sinfônico da urbe. Após duas semanas de procura inútil eu mudo minha estratégia e levo alpiste. Tento uma aproximação em troca da guloseima, mas quem se farta são os pardais e os pombos. Nada do pássaro que, equivocado, perdido no tempo talvez, continua cantando, alheio ao burburinho que o rodeia.

As semanas passam e a avezinha continua sua rotina, fugindo de mim. Insisto na caça. Sigo o som do trinado e continuo semeando alpistes e frutas que são devoradas pelas pestes pardas e pombos. Espanto os com uma ripa pequena, não tenho intenção de machucar os pássaros da paisagem, só quero preservar a ceva do pintassilgo que ainda foge de minhas vistas. Eu o ouço. Perseverança é uma virtude, mantenho o ritual por quase três meses. Ver a avezinha tornou-se uma obsessão. Dia após dia exerço a rotineira caça ao pássaro e finalmente, numa tarde de nuvens carregadas ele desce e vem comer o alimento que ofereço. Fico estático! Tal qual o Dr. Pereira Barreto eu o observo se fartando com o pouco que os pardais deixaram. Estou agachado no centro do canteiro oeste, ao lado de uma palmeira imperial. O pássaro vem em minha direção. Não tem medo a avezinha. Ela é tão incompatível com a paisagem! Deve ter fugido de alguma gaiola e encontrado na praça nuances, vestígios de seus antepassados que, como as árvores centenárias, resistiram ao tempo, aos anos de urbanização e agora amparam a solidão do pequeno pássaro. Infelizmente apenas a solidão do pássaro é compatível com a metrópole que se formou em torno desses fantasmas. Seu canto melódico não combina com a praça, ele quase agride a ordem desordenada dos sons que compõe a paz urbana. Diante de mim tenho o invasor canoro, ele me confunde com a estátua e por isso se aproxima tanto. Não perco a oportunidade, num gesto premeditado e ensaiado durante dois meses, eu levanto a ripa e zap! Esmago a avezinha contra o chão.

Controlo a respiração e a euforia. Em minhas mãos a ripa manchada de sangue oferece a certeza de que a sinfonia da metrópole está a salvo, a paz urbana foi restabelecida. Ouço apenas ruídos compatíveis e sinto-me recompensado por tamanha abnegação. Começa a garoar. As senhoras fogem carregando seus cães, os velhos recolhem o dominó, os desempregados se protegem com os classificados, crianças correm. Contemplo a praça sendo abandonada pelos seus usuários cativos, menos pelos jovens da bola, e sinto uma comovente felicidade. Sorrio para a cidade e ela parece me responder cúmplice com uma gargalhada rápida, mas foi apenas uma freada brusca. Algum louco apressado.

 
 
fale com o autor