Você tem livros
em casa, certamente. Nem que seja um velho e rotundo "Pequeno Dicionário
da Língua Portuguesa", talvez alguns tomos da "Cozinha Maravilhosa
da Ofélia", as receitas do açúcar União, um ou dois best-sellers.
Tem no mínimo um "Minutos de Sabedoria", do Pastorino. Pode
ter poucos, mas alguma coisa paginada deve estar lá, encostada na estante
da sala.
Talvez você seja daqueles maníacos por enciclopédias. Tenha várias edições
da Barsa, pelo menos uma da Britânica, a Delta, até aquelas séries que
vendem nas bancas de jornal. Ficam guardadas num ton-sur-ton, do ultravioleta
ao infravermelho, e com os volumes em ordem crescente. Metade à esquerda
da TV, a outra à direita.
Se você for daqueles que, ao passar por um sebo, saliva feito mulher cruzando
a porta da Copenhagen, ou da Amor aos Pedaços, então nem se diga. De uma
forma ou de outra, todos nós temos lá nossa biblioteca pessoal, menor
ou maior, rica ou pobre, culta ou trivial, rara ou comum.
Aí chegou a era digital, da informação, e ZAP, com ela, os livros digitais.
Você pode guardar "A Divina Comédia", ou "Os Lusíadas",
e até "A Eneida", num disquinho do tamanho de uma omelete de
um ovo, pouco menor que uma panqueca. Dante e Virgílio inteiros ali? Cabeça,
tronco e membros? Todo aquele trabalho, e acabar vendo seus cantos jogados
num canto do porta-cds? Isso não é épico, nem aqui, nem na Grécia, nem
em Trás-os-Montes.
Segundo o avanço tecnológico, para escrever uma obra volumosa, em termos
digitais, o autor precisaria inventar "gigas" de histórias,
romances, poemas, ficções. Coisa que não levaria mais que três séculos
de criação e produção profícua. Isso para chegar a uma obra de... cinco
ou seis CDs, talvez sete. Mas jamais um catatau. Caberiam nos dois bolsos
de trás de qualquer calça Lee surrada, mesmo das paraguaias. É desanimador!
A Biblioteca da Alexandria caberia inteira, sem pôr nem tirar, na gaveta
de sua escrivaninha. E ainda sobraria espaço para o acervo do Mindlin,
e um quarteirão de boas livrarias. Já pensou nisso? Um poder cultural
de dar inveja a qualquer telefone vermelho da era Kennedy?
Meu Padim Ciço, como é que fica aquele prazer digital - digital aqui de
dedo mesmo, envolvendo falange, falanginha e falangeta - de ficar dedilhando
os livros nas prateleiras, virando a cabeça para ver o nome da editora,
polvilhando a ponta do pai de todos e do fura-bolo com aquela poeira cheia
da sabedoria dos tempos, misturando nossas digitais à massa dos leitores
que nos precederam?
Faça um milagre, meu santinho! Livre-nos dessa miniaturização desavergonhada
que nos invade. Que pelo menos os CDs tenham o diâmetro de uma pizza quatro
queijos. Mas não os deixe reduzir nossa história escrita aos poucos centímetros
desse espelho redondo, furado no meio, que algum míope inventou.
Se ao menos os CDs tivessem orelhas, mas nem isso - eu, que adoro aquelas
de abano, verdadeiros Dumbos, com a biografia do autor, a lista completa
da obra, e uma pequena resenha do conteúdo. Não passaria de uma leitura
surda, de textos moucos. Como ler um livro sem orelhas estridentes?
E o marcador de página? O que será dele? Aqueles em forma de lâmpada,
os que trazem propagandas de farmácias, mensagens de paz e amor, telefones
úteis, etc. Isso sem falar no fitilho, de seda, ou de cetim, condenado
à extinção?
E ainda nos permitem abrir as entranhas de um romance em editores de texto,
mudar a cor da fonte, o fundo, o tamanho da página, dar zoom, e até girar
180 graus.
Quem somos nós para ousar diminuir a letra de um Guimarães Rosa, tentar
um itálico sobre a elegância de Cecília Meireles, tingir de ciano a pena
negra de Castro Alves?
E se algum tresloucado remover um circunflexo, uma crase, um agudo que
seja, de uma roparoxítona, e reimprimir um capítulo inteiro de Veríssimo?
Ou apagar uma preterição do Padre Vieira? Quem blasfema tanta liberdade
aos leitores?
Alguém tem que fazer alguma coisa. Nem que seja bater o pé, dançar o "Vira",
prender a respiração até ficar azul, fazer greve de churrasco, pôr Araldite
na fechadura, chiclete no cabelo da bibliotecária, mas livro digital não
dá não.
Eu quero cupim nos livros, não vírus!
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