BASTIDORES
Míriam Salles
 
 

"Chorei, chorei, até ficar com dó de mim"
Chico Buarque

Sentado no camarim, olhando as luzes refletidas no espelho, Duda pensava no que iria fazer em seguida.

Primeiro iria tirar a maquiagem, tomar um bom banho e remover aquele perfume enjoativo com cheiro de fêmea barata. Não gostava daquele perfume mas haviam lhe dito que era um dos melhores. Talvez fosse o nome que lhe causasse enjôo: Anaïs Anaïs.

Tirou a peruca ruiva de cabelos naturais e penteou-a com extremo cuidado antes de colocá-la sobre o suporte especial que não deixava os cachos embaraçarem. Não podia deixar que se estragasse pois custara os olhos da cara. Ou melhor, custara uma noite de prazeres vendidos. A lembrança causava asco, mas havia sido a única forma de conseguir o dinheiro. Cabelos naturais custam muito mais caro, mas causam melhor impressão.

Metodicamente despiu-se, guardando cada peça na única gaveta do pequeno aposento, como se montasse um quebra-cabeça. Era um ato que exigia raciocínio e esse era um dos poucos momentos em que podia usar e abusar de sua inteligência. Geralmente seus atos eram ensaiados e isso só requeria uma boa dose de concentração e memória, o que tinha de sobra.

Sabia que devia todo seu conhecimento à leitura. Livros eram sua droga, seu tesouro mais precioso. Fosse em troca de livros e nem hesitaria em se entregar novamente, mas nunca os podia comprar. Tudo que ganhava gastava pra sobreviver ou em novas fantasias. Viver era um quebra-cabeça muito mais complicado que organizar a pequena gaveta.

Tirou os enchimentos de seios. Se recusava a colocar silicone, talvez num gesto derradeiro de resistência. Despiu a meia calça elástica apertada, ótima para modelar melhor as formas e acomodar os enchimentos da região dos quadris. Ao dobrá-la, notou que havia um furo. Da gaveta retirou um esmalte incolor e com toda a delicadeza que suas mãos desajeitadas permitiam cobriu o buraco, impedindo assim que continuasse a desfiar.

O vestido curto de renda preta e os sapatos já estavam guardados no cabide e embaixo da cadeira da esquerda, respectivamente Eram as primeiras peças que tirava, invariavelmente, inevitavelmente.

Entrou no box de acrílico, um luxo que conquistara com sua excelente performance no palco, o que garantia casa cheia pelo menos nos finais de semana, quando as pessoas saem para gastar dinheiro com o que querem e não com o que devem.

Lavou-se com pressa e força, esfregando-se com raiva, tirando (ou pelo menos tentando) tudo aquilo que incomodava. Gostava da expressão "lavar a alma". Era o que gostaria de fazer, se pudesse.

Saindo do banho, passou o desodorante sem cheiro e vestiu-se pegando as roupas dobradas em cima da cadeira da direita. Calçou os sapatos, penteou os cabelos curtos, olhou em volta para ver se havia algo fora do lugar. Era sua armadilha pessoal contra os curiosos e todos sabiam que se alguém invadisse seu território seria descoberto rapidamente.

Ao fechar a porta verificou os bolsos em busca dos documentos. Procurou a carteira de identidade e não encontrou. Com um princípio de pânico voltou e esmiuçou todos os cantos. Perder a identidade é muito sério. Encontrou-a caída atrás da cadeira da direita, a cadeira das roupas de sair feito gente. Olhou demoradamente a foto amarelada e gasta pelo tempo e não se reconheceu.

Virou-se e saiu, levando a identidade onde se lia em letras de máquina de escrever de DP: Eduardo Siqueira.

 
 
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