PANOS MOLHADOS
Beto Muniz
 
 
No geral criança vive perdendo coisas, porém existem perdas e Perdas. Penso que uma é simples rotina e faz parte do aprendizado. Outra não deveria ocorrer antes de adquirirmos inteligência de assimilação. Mas se justamente quando aprendemos a assimilar nossas dores é que deixamos de ser criança, quando deveríamos conhecer a dor? Não sei. Não tenho respostas. Tudo que tenho é uma fantasia de que existe um lugar, ou uma realidade paralela, onde as crianças estão a salvo de qualquer dano. Sei que é uma utopia, mas me faz bem cultivar o pensamento de que em algum lugar, ou plano, nossas crianças não sabem o que é sofrer.

Na rua Colômbia, região nobre de São Paulo, alguém estendeu uma faixa enorme: "Encontra-se perdido um cachorro da raça Pinscher, marrom com patas e focinho branco. Atende pelo nome de PELOTA. Uma criança está inconsolável". Não creio que foi a criança quem perdeu o cãozinho, mas imagino ser ela, realmente, quem mais sente a ausência do animal. Só não acho correto o adulto eximir-se de sua responsabilidade e apelar para o clichê de imputar a perda maior na criança. É a forma encontrada para sensibilizar os possíveis caçadores de cães e recompensas. Por que o adulto não assume sua irresponsabilidade: "Perdi um cachorro pinscher que atende pelo nome de Pelota. Peço sua ajuda para encontrá-lo".

Quem perde um cão pode perfeitamente perder uma criança! Não?

Posso parecer um tanto quanto radical, mas a verdade é que fico triste pela criança inconsolável e culpo a negligência do adulto... Bem, como eu disse, há perdas e Perdas! Deixa eu desenvolver isso.

Durante o jantar eu coloquei uma pedra de gelo no suco de minha filha. Ela achou engraçada aquela pedrinha na bebida e não teve dúvidas, meteu a mão. Sou um pai que preza o descobrimento e permiti que ela se aventurasse com o gelo. Poucos segundos segurando aquele cubo incolor bastaram para que ela o devolvesse ao copo com a constatação equivocada:

- "Tá quenti...".

- É gelado, Cacau.

Por ser seu primeiro contato com a água em estado sólido ela discordou do ensinamento e manteve a inflexão na constatação terminante:

- Quenti!

- É gelo, filha. Gelo é água bem fria.

- "Guaguá"?

- Isso, água beeeem fria, beeem gelada. É gelo.

Ela não deve ter entendido, pois resolveu descobrir por meios próprios. Eu e minha esposa, então, continuamos com a refeição e deixamos a menina com suas descobertas. Não percebemos quando ela desceu da cadeira e começou a procurar algo embaixo da mesa.

- Cadê?

- O quê?

A menina mostrou o suco dentro do copo e evidentemente procurava o gelo. Como explicar para uma criança de um ano e dez meses os processos e alterações nos estados da água? Enquanto pensávamos em uma resposta, a mãe dela e eu rimos da situação. A menina não gostou dos risos nítidos de deboche e cobrou a urgência na resposta de sua busca:

- Cadê?

- Derreteu! Gelo derrete.

Ela não entendeu o que era derreter, só entendia que havia perdido o brinquedo antes de conhecê-lo. Tornou a subir na cadeira para continuar a busca em cima da mesa, entre os pratos, dentro do copo, no assento da cadeira. Evidentemente ela não encontrou, e após algum tempo indagou intrigada:

- "Cabô"?

- Acabou filha, papai te dá outro.

Busquei mais cubos de água sólida e fiquei um bom tempo ensinando, na prática, que gelo derrete e, nesse caso, derreter era acabar ou sumir deixando a toalha, as roupas e o guardanapo molhados. Não sei se a explicação alcançou a lógica dentro do entendimento da criança, sei apenas que ela achou divertido segurar o gelo até "queimar" os dedinhos e depois colocar a mão em meu pescoço ou correr dos meus dedos gelados numa brincadeira que durou até esgotar a munição na geladeira. Depois que ela dormiu, cansada e feliz, eu fiquei com a tarefa de secar a mesa, o guardanapo, roupas. Comecei a fantasiar novamente uma realidade paralela onde o gelo não acabava nunca. Sei que minha filha ganha, mas eu perco algo a cada lição. Por experiência própria eu sei que essa inocência vai se perder no tempo, e algumas descobertas vão chegar acompanhadas de reações bem diferentes dos risos debochados do pai e da mãe. É certo também que nem tudo é dor, mas se aqui em casa a dor do gelo queimando as mãos foi transformada numa brincadeira de pai e filha, na rua Colômbia o Pelota continua perdido. Quem garante que a dor dessa perda será suplantada pela felicidade de um reencontro?

Nossas crianças não deveriam sofrer. Deveriam ser poupadas pelo menos até entenderem que uma pedra de gelo é apenas um cubo de água sólida refrescando o copo de suco. Pode ser uma utopia, mas nessa minha fantasia as esquinas não exibem faixas e os adultos não dormem sem antes secar a toalha, as roupas e o guardanapo molhados.

 
 
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