INIMIGO
ÍNTIMO
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Tarciso
Oliveira
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Não
se poderia dizer que Maria estivesse com a sua melhor roupa, mas era uma
das suas mais novas e uma das que ela mais gostava. Não era nem sexta, nem
sábado e tampouco domingo. Estavam lá sua mãe, seus dois irmãos e suas três
irmãs, inclusive a Leninha que se deslocou de Natal para vê-la. Seu pai,
é claro, não poderia estar lá, há dois anos desaparecera dizendo que iria
ganhar a vida em São Paulo e quando estivesse bem levaria todos. Nunca mais
ninguém teve notícias do velho Tonho. Alguns diziam que ele deveria até
estar morto ou, quem sabe, preso por algum delito qualquer. Quando morava
ainda com a família no bairro da Mangueira no Recife ele aprontava por demais.
Não parava em emprego algum, pois não conseguia ficar longe da maldita cachaça.
Era, na verdade, um tormento para a família de Maria. Muitas vezes a própria
Maria teve de se jogar entre ele e sua mãe para tentar salvá-la das porradas
que ele desferia contra ela quando recebia uma reclamação. Estava sempre
bêbado. Como ele conseguia ingerir tanto álcool e continuar vivo era um
mistério. No início da ausência do marido dona Zefa ainda andou choramingando
pela casa, afinal, eram 25 anos de casados. É certo que houve muitas separações
durante esse período, talvez umas quinze ou vintes, ela já havia perdido
a conta. Contudo, nunca ele demorara tanto tempo para voltar como dessa
última. Todos já estavam conformados com a situação. Pode-se dizer até que,
após o sumiço do Tonho, todos da família ficaram mais alegres, e os amigos
também. Era horrível ver aquele sujeito embriagado dando porradas nos filhos
e na pobre da dona Zefa.
Por um instante, ali parada ao lado da filha, dona Zefa pensou no marido e se persignou. Esteja onde estiver, é melhor que fique por lá, pensou. Foi daí que ela se tocou que a Leninha já chegara e nem tivera oportunidade de falar com ela. Abraçou-a emocionada e ficaram um bom tempo agarradas. As lágrimas corriam frouxas dos olhos de dona Zefa, encharcando o vestido da filha. Leninha também não conteve a emoção e acompanhou a mãe no coral de soluços. E olhe que Leninha era considerada uma pessoa fria e insensível. Mas isto foi inveja da vizinhança que não aceitava a idéia de vê-la partir com o namorado da época em busca de uma melhor chance no Rio Grande do Norte. Saulo, hoje seu marido, era de Natal e queria que ela voltasse junto com ele quando retornou. Ele viera para o Recife fazer um curso que durou um mês. Leninha o conheceu na praia e se apaixonou de imediato. Todos diziam que ela era apenas uma aventura para Saulo, mas a história mostrou o contrário. Hoje ela é a pessoa da família que vive numa melhor situação financeira e ainda manda mensalmente uns trocados para a mãe. Todos tiveram que dar o braço a torcer. Leninha observou que nunca vira Maria tão bonita. E era verdade. Todos concordaram. Ela sempre foi bonita, relaxou um pouco depois que caiu na besteira de se envolver com o Chico. Aquilo realmente foi a sua pior decisão da sua vida. Ninguém na família gostava dele, era um cara estúpido e ignorante. Também bebia muito e, quando o fazia, desconhecia todos. Antes de se juntar com a Maria até que era um pouco melhor, mas depois foi ficando cada vez pior. Nunca se viu um cara mais ciumento lá na Mangueira do que o tal do Chico. O casal ficou morando lá mesmo, na mesma rua de dona Zefa. Era uma casa em pequena mais era o suficiente para um casal. O infeliz do senhorio é que sofria para que Chico pagasse os aluguéis em dia. Ele, a exemplo do pai de Maria, também vivia desempregado. Mas sempre fazia uns bicos que dava para compra a comida e cachaça, só não sobrava para o aluguel. O pessoal da companhia elétrica estava cansado de cortar sua energia, ele sempre fazia uma gambiarra e ligava. Com a água fazia o mesmo. Maria não teve sorte na sua escolha. Rogério perguntou se alguém queria café. Foi à cozinha da casa de Maria de retornou com uma bandeja com alguns copos americanos com dois dedos de café cada. Ele sempre foi um bom irmão e um filho melhor ainda, dona Zefa que o diga. Tinha só dezenove anos e já estava trabalhando numa fábrica há seis meses. Tudo o que recebia dava em casa, só tirava um pouco para o seu cigarro e uma cervejinha no final de semana. Os seus outros dois irmão mais novos, de quinze e dezesseis anos ainda não trabalhavam, mas também não davam trabalho para a família. Ambos estudavam, o que era uma exigência tanto de dona Zefa quanto da sua única filha que morava ainda com ela, a Conceição. Ao receber o copo de café de Rogério, Conceição se dirigiu para o lado de Maria. Alisou sua mão e parou pensativa. Refletiu um pouco sobre sua própria vida. Ela era a mais velha das filhas de dona Zefa. Nunca casara e nem pensava no assunto, decidira cuidar da sua mãe até os seus últimos dias. Tinha isso como um projeto de vida. Era também muito religiosa e andava para cima e para baixo com a bíblia na mão. Não ficava apregoando sua religião pelos quatro cantos, era bem discreta e reservada. Seus olhos estavam bem vermelhos naquela hora. Já estava sem dormir a mais de vinte horas. Sua mãe se aproximou e as duas trocaram um longo abraço, depois Leninha chegou e envolveu as duas com os seus braços. Ouviu-se alguns soluços tímidos e, enfim, separaram-se. Maria continuava ali, muito bonita e trajando sua melhor roupa. Não precisa nem dizer que o Chico não estava. Àquela altura já deveria estar bem longe. Ninguém da família de Maria chegou a vê-lo desde o dia anterior. Quando ele deixou sua casa nas carreiras na madrugada do dia anterior, apenas o pessoal do barzinho da esquina o viram. Quando sua família chegou já a encontrou sozinha, jogada na cama com um tiro no peito. Mas agora ela estava bem mais bonita do que em todos aqueles dias do único ano em que vivera com aquele assassino. Se os presentes prestassem um pouco mais de atenção poderiam perceber que no seu lábio existia um ar misterioso, talvez, quem sabe um discreto sorriso. Afinal, agora ela estava livre. |