FIM
Sérgio Galli
 
 
Inimigo íntimo. Parece-me título de filme americano. Não vi. Não gostei. Óliude. Féstifude. O império contra ataca. Pré-conceito. Provavelmente.

Outro dia comentava com um amigo justamente sobre isso. O domínio quase onipotente dos filmes americanos. Num determinado tempoespaço do século passado havia cinema francês. Cinema italiano. Até cinema brasileiro! Tinha Buñnel e o discreto charme da burguesia e la belle de jour. Ingmar Bergman e o sétimo selo, cenas de um casamento. Claro, alguns americanos: John Huston, Robert Altman, Woody Allen, Stanley Kubrick. Nas rádios, podia se ouvir música brasileira! Sim, um espanto. Chico, Edu Lobo, Gil, Caetano, Orlando Silva, Tião Carreiro e Pardinho, Pixinguinha, Dona Ivone Lara, Elisete Cardoso... Na América, para não dizer que sou antiamericano, jazz: Charlie Parker, Louis Armstrong, Lester Young, Billie Holliday, Cole Porter, Charlie Haden, Miles Davis, Coltrane, Ornette Coleman e o Free Jazz. Com muita ansiedade e curiosidade, aguardávamos a estréia do novo filme do Fellini, do Godard, do Visconti, do Pasolini, do Altman, do Wadja. O novo disco do Edu, do Chico. Tudo era motivo para debates: cinema, política, revolução, filosofia, arte, ideologia.

Não, não é saudosismo. Mesmo porque não sou tão velho assim. É o simples observar de um modesto cidadão. Entretenimento (nada contra, mas não chame isso de cinema, música, arte). Esta é a palavra. Melhor, a indústria. Não há mais filme adulto. Cinema de óliude é infantil, no pior sentido da palavra. É o herói solitário, capitão América, a enfrentar o dragão da maldade e salvar a América e agora, o mundo (rambo, indiana jones, titanic, uma linda mulher, forrest gump, gladiador, coração valente, o patriota, matrix, canibal, parque dos dinossauros...). Banalizou-se a violência, as emoções, o sexo. A violência pela violência. Tudo numa bela embalagem. Não é por acaso. Não é paranóia.

O geógrafo brasileiro Milton Santos, recentemente falecido, fez uma síntese perfeita: vivemos sob a tirania do dinheiro e da informação. Um está umbilicalmente ligado ao outro. Não é à toa as grandes fusões de empresas cinematográficas com TVs, internet, jornais, fibra óptica. Tudo é mercadoria. Tudo é espetáculo. Dinheiro, um valor em si mesmo, em estado puro.

Inimigos íntimos eram a América e a União Soviética durante a guerra fria. Odiavam-se. Amavam-se. A ameaça da guerra nuclear era uma forma de manter a paz dos cemitérios. A América tinha um inimigo. A União Soviética tinha um inimigo. Situação confortável para ambos. A União Soviética acabou. Os áulicos cantaram vitória. O fim da história. E veio a mundialização (um mito, tema para outra crônica). O Pensamento único. A voracidade da indústria do entretenimento. Todo dia nas páginas dos ditos cadernos culturais há uma "notícia" sobre óliude. Uma entrevista com um ator, atriz ou diretor. Fofocas sobre os "artistas". Em relação à "música" é a mesma coisa. Pior. Inventam rótulos: hip hop drum´bass (é assm que se escreve?), techno, rave, samba-roque?, pagode, sertanejo, axé, funqui, world music (sic)... Isso sem falar em literatura, ou seja, best-sellers, livros de auto-ajuda, e por aí afora. É igual a troca de embalagem de sabonete, detergente, pasta dental.

Tudo é descartável. Pós-"muderno". A ânsia da novidade. O que hoje é novo, ontem, era arcaico. Vanguarda, agora. Amanhã, retrógrado.

Sintomas da decadência. Tal qual no declínio do império romano. Estamos, na expressão hindu, no Kalyuga, a época da destruição. Tudo desaparece. Amiúde, assistimos o começo do fim do império americano. Será que nossos netos assistirão, via tv digital, os estertores, a derrocada do american way life? A escatologia da idade média - a idade das trevas - preconiza o fim dos tempos e o posterior mil anos de felicidade. Mais idade das trevas do que este principiar de terceiro milênio, impossível. Um sinal? Abolição do Cosmo. Fim. Será um final feliz, tipo óliude? The end.

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PS: tomo a liberdade de fazer algumas sugestões de leitura: "Declínio e queda do império romano", de Edward Gibbon, Cia. Das Letras. "O Sagrado e o Profano", de Mircea Eliade, Martins Fontes. "Por uma outra globalização", de Milton Santos, Record. "Entrevistas sobre o fim dos tempos", entrevistas com Umberto Eco, Jean Delumeau, Stephen Jay Gould e Jean-Claude Carrière, Rocco. "Big Brother", uma nova etapa: a "Pós-Televisão", artigo do diretor de redação do jornal francês Le Monde Diplomatique, junho de 2001.

 
 
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