COCTEAU E EU
Roseli Pereira
 
 
"Nossa! Que cara mais horrorosa!"

Todo santo dia ele faz uma observação desse tipo logo que eu acordo, de manhã. Poderia, ao menos, dizer bom dia primeiro. Mas ele não tem a menor sensibilidade. E muito menos educação.

"Credo! O que aconteceu com o seu cabelo?"

Eu apenas suspiro e tento ajeitar. Gosto dele, apesar dos pesares. E somos íntimos desde… acho que desde sempre. O que não deixa de ser uma forma de tortura.

Além de ele estar sempre na minha casa, nós nos encontramos o dia inteiro. Em quase todo lugar. Às vezes estou zanzando pela rua e dou de cara com ele:

"O que foi isso? Babou café na blusa?" Ai, ai…

Ou então: "Seu colarinho está bem amassado. Você tem mesmo que botar a alça da bolsa bem aí?"

Ou eu entro no elevador e ele está lá:

"O que é isso nos seus ombros? Caspa?"

Dou uma espanadela rápida com as mãos e nem respondo.

"Tá aparecendo a marca da calcinha!" ou "Deus me livre! Esse vestido aumenta a poluição visual da cidade."

E têm muitas, muitas outras mais. Um verdadeiro grosso.

Mas, geralmente, o meu humor está tão bom que nem ele consegue me azedar:

"Não tá vendo que esse colar não combina com os brincos? Ficou over." Ou: "Isso aí é pose de perua."

E eu olho para o outro lado fazendo glu-glu. Se estou me sentindo bem deste jeito, ele que vá se danar.

Só que de vez em quando ele exagera: "Essa roupa te deixa uma baleia."

Dou uma ajeitada geral, mas ele continua observando: "Não, não é culpa da roupa: é você que está uma baleia."

E eu prometo tentar emagrecer, pensando só nos momentos bons. Naqueles momentos tão felizes em que ele me encara satisfeito e eu sinto, na hora, que vou arrasar.

Mas o maldito nunca me faz sentir assim quando eu estou precisando. Ao contrário. Para tais ocasiões, ele sempre reserva alguma coisa como:

"Chi! Será que alguém anotou a placa do caminhão?".

Confesso que é bem difícil. Pra não dizer infernal. Mas eu agüento calada porque simplesmente não consigo me ver sem ele.

Só acho que, como já disse Jean Cocteau certa vez, o espelho deveria pensar duas vezes antes de refletir (principalmente se quem está diante dele sou eu).

 
 
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