COISAS
DA VIDA
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Paulo
Panzoldo
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Chovia
torrencialmente naquela madrugada. Ramon, o investigador, cochilava levemente
quando Maria entrou na delegacia de Polícia, toda ensopada, com lama dos
pés à cabeça. Dona Terezinha, a escrivã, fazia palavras cruzadas na sala
de meios.
- Seu dotô eu vim aqui pra dizê que matei meu marido. Ramon, sobressaltado com o susto: - Matou quem?? - Antonio, o meu marido. - Mas que história é essa? Quem é a senhora? - Maria. Me chamo Maria das Dores e moro lá na fazenda do Coronel Lemos. - Ah, o coronel Lemos. Ele já sabe que a senhora matou o seu marido? - Sabe não sinhô, seu dotô. - Eu não sou o doutor delegado. Sou apenas Ramon, o investigador. A senhora sente aqui e se acalme que eu vou mandar chamar o doutor. Terezinha, ô dona Terezinha, corra aqui que temos um homicídio. - Aqui seu Ramon. - Telefone para a casa do Dr. Abellardo. Temos aqui um crime de morte. - De quem? Da bezerra? Aqui não se mata nem mosca há uns dez anos... - Deixe de conversa mole e vá telefonar ao doutor que o caso é grave. É na fazenda do coronel Lemos. - Mataram o coronel? - Não. Não foi o coronel que mataram. - Pena, seu Ramon, pena... - Deixe de gracinha e cumpra com seu dever! - Mas com essa chuva, seu Ramon, vai ser difícil o doutor levantar da cama. - Com essa chuva, dona Terezinha, até Jesus Cristo levanta quando se trata de alguma coisa envolvendo o coronel Lemos. - Sim senhor, seu Ramon, seja feita a vossa vontade - disse, ironicamente a escrivã. Enquanto a escrivã foi telefonar ao delegado, Ramon tratou de saber mais sobre o caso. Descobriu que Maria foi a última das três irmãs que vieram do interior de Minas. Chegou à cidade aos dezesseis anos. Moça bonita, assediada pela peonada no footing da praça, até que conheceu Antonio. Logo noivaram e casaram. Antonio era tratorista na fazenda do coronel Lemos. Homem trabalhador, bom pai e marido. - Então por que é que a senhora o matou? Por ciúmes? - Não sinhô, seu moço, que o Antonio não era dado a isso, não. - Então por que é que foi? - A bebida, seu moço, a maldita da cachaça. Cada vez que aquele home bebia era uma desgraceira. Batia em mim e nas criança inté deixá marca. - E a senhora nunca se queixou aqui na Polícia? - Não sinhô. Nem aqui nem pro coronel Lemos. Se o homem descobre mandava nóis embora da fazenda na mema horinha e aí, seu moço, donde é que nóis ia arranjá otro trabaio? - E hoje ele bebeu? - Bebeu muito, seu moço, passou por dimais da conta. Dr. Abellardo, de Polícia Delegado entra na delegacia tão molhado quanto Maria. - É bom que essa história seja verdade, senão eu prendo a senhora e esses dois imprestáveis aqui. - Mentira não seu, seu dotô. Matei o Antonio agorinha de pouco. - Matou como, de facada? - Não sinhô, foi de machado memo. - Machado??? - espantaram-se os três policiais. - De machado sim, seu dotô. De machado do bão. - Seu Ramon, mande chamar o médico. - ordena o Delegado. - Carece de médico não, seu dotô. Antonio tá lá mortinho. - Eu sei, minha senhora, é para a perícia. Onde é que está o corpo? - Lá na fazenda, seu dotô, na fazenda do coronel Lemos, onde nóis morava mais as criança. - O coronel já está sabendo do ocorrido, dona? - Sei dizê não, seu dotô. Saí de lá correndo pra pagá pelo meu crime. Que Deus me castigue pelo que fiz. Ele era um homem bão, seu dotô. Honesto, trabaiadô. Mas quano bebia... batia ni nóis tudo inté deixá marca. - E hoje? - Hoje passou da conta, seu dotô. Dispois de batê na gente passou a mão no facão e botou nóis, eu e as três criança, tudo pra fora de casa. - A senhora e as crianças? Com essa chuva toda? - Pois foi isso memo, seu dotô. - E por que a senhora não foi se queixar lá pro seu Coronel Lemos, ao invés de matá-lo? - É como eu dizia aqui pro moço, se o homem descobre que Antonio bibia botava nóis tudo na rua da amargura na mema horinha. - Antonio de quê, minha senhora? - Como assim, seu dotô? - O nome inteiro do Antonio, a graça, como é que era? - Era Antonio Inocêncio, seu dotô. Os três policiais se entreolharam, mas nada disseram. Sabiam de quem se tratava. Antonio era filho de uma antiga empregada da fazenda do coronel. Era de confiança do homem e boa coisa não esperava por Maria. Eventualmente os três iam à fazenda do coronel para um churrasco e um arranca-toco bem jogado no campinho de futebol. Conheciam bem o tal Antonio. Diziam as más línguas que era filho ilegítimo do coronel com a tal empregada. - Seu Ramon - disse o delegado - prepare o Jeep que eu vou ao local do crime. O senhor me acompanha e a dona Terezinha fica aqui tomando conta da senhora. Na fazenda, o Delegado examinou o corpo, ou o que restava dele. Ramon passou mal. Não agüentou aquela cabeça destroçada. A porta foi arrombada, aparentemente com o próprio machado. Dr. Abellardo, de Polícia Delegado interrogou os vizinhos da colônia. Ninguém viu, ninguém ouviu. Só Lindalva, que abrigou as crianças quando Antonio botou a família para fora da casa debaixo daquela chuva, sabia que Maria ia fazer alguma besteira. Era ela, a comadre, quem dava abrigo às crianças toda vez que Antonio bebia e batia em todo mundo. Veio o coronel. - Boa noite, seu Delegado. - Boa noite, seu Coronel. - Pois é, o homem bebia e batia na mulher e nas crianças. Até deixar marca. Hoje passou da conta e botou os três pra dormir na chuva. Deve ter passado da conta da coitada da Maria. Onde está a Maria? - Na delegacia, seu Coronel. Foi lá e se entregou para o Ramon, nosso investigador. Mas então o senhor já sabia que o homem era violento quando bebia? - Não acontece nada por aqui que eu não fique sabendo, seu Delegado. Se ele soubesse que eu sabia, eu ia ter de mandar essa gente embora e quem ia pagar o pato era a coitada da Maria e as crianças. Vai ficar presa, seu Delegado? - Vai, sim senhor, seu Coronel, premeditou o crime. Pelo que pude constatar ela deixou as crianças na casa de dona Lindalva, foi ao depósito, pegou o machado e esfacelou a cabeça do homem enquanto ele dormia. Não deu chance de defesa, tem vários agravantes... - Agravantes porra nenhuma seu Delegado. Maria é de boa índole, boa mãe de família. Mulher honesta e trabalhadeira. O senhor trate é de soltá-la que quem manda nessa cidade aqui sou eu! - Não posso, seu Coronel. A moça já se entregou, tem testemunhas. - Que testemunhas, seu Abellardo? - Doutor Abellardo, faça o favor, seu Coronel, Doutor Abellardo, de Polícia Delegado. - Ora deixe de conversa mole e solte a língua, homem. - Tem o Ramon, aqui presente, a dona Terezinha, nossa escrivã, dona Lindalva e mais esse povo todo aqui. - Pois que fique na sua consciência, seu doutor de Polícia Delegado. Do meu pessoal cuido eu, o senhor que cuide do seu. Solte a mulher. - Tem também o Dr. Miguel, o médico, que vem vindo aí fazer a perícia. - Cumpra com seu dever, seu Doutor de Polícia Delegado, e durma com seus anjos que eu vou cuidar do enterro de Antonio. Dr. Abellardo e Ramon voltaram à cidade. A chuva já não caía tão forte e a viagem foi mais curta. O investigador permanecia em silêncio enquanto dirigia o velho Jeep. Abellardo, digo, Dr. Abellardo, de Polícia Delegado ia pensando no que fazer com o caso. Não que o tal coronel mandasse tanto assim naquela cidade, pois os tempos já eram outros, mas ficou pensando na Maria e naquelas crianças. Uma vida inteira cercada de tragédias. Se não é a fome é o patrão safado, se não é o patrão safado é a carência disso ou daquilo. Um novo dia, uma nova tragédia. Se não é com ela é com a vizinha, ou com a vizinha da vizinha. Às vezes com alguém distante, um parente, um amigo, mas é tragédia todo dia. Diacho de vida essa, mesmo sendo o coronel um bom patrão. Dava escola e toda assistência a seu pessoal. Só era ruim mesmo com político. Esses ele não perdoava. Dizem que mandou matar um montão de prefeito e vereador daquela região, mas nunca ninguém conseguiu provar nada contra o homem. Chegando à Delegacia, o Delegado foi interrogando Maria. Nome, estado civil, idade... - Anote nada ainda não dona Terezinha! - A senhora está arrependida do que fez? - Por Deus Nosso Sinhô Jesus Cristo que eu tô, seu dotô, mas se aquele desgraçado vortá lá dos inferno, bêbado e bateno na gente como fazia, eu juro pro sinhô que eu picava ele no machado tudinho de novo. - Anote aí dona Terezinha! Natureza da ocorrência: homicídio qualificado de autoria desconhecida. Histórico: a senhora aqui qualificada foi com as crianças até a casa da comadre Lindalva junto com as crianças e quando retornou à sua casa encontrou o Antonio, todo picadinho. É... foi isso mesmo que aconteceu. São coisas da vida. Caso encerrado! |