CARTA PARA ANA MARIA BRAGA
May Parreira e Ferreira
 
 

 

Uberlândiavinteequatrodeagostodedoismileum

Querida Ana Maria,

Faz tempo quero escrever, nunca tive coragem. Hoje me encho de sobras da noite, e encaro o dia com uma carta na cabeça. Sou Psicanalista e estou morando em Uberlândia desde outubro de doismil. Meu marido e eu viemos de Sampa onde deixamos família, amigos, trabalho. Deixei meu consultório de quase trinta anos, as aulas que dava na Usp, para acompanha-lo e voltar à minha origem caipira, onde observo a natureza e escrevo.

Trabalhando desde sempre, as filhas para criar, nunca tive tempo de ver, achava mesmo coisa menor, TV Mulher e outras do gênero. Você sabe das reservas que são feitas às mulheres-do-lar por profissionais e/ou intelectuais. Bem, na minha vida no Cerrado, uma das maiores faltas que senti foi a de uma rádio com músicas que agradassem meus ouvidos. Pela manhã, depois do café com o marido, vou arrumar o quarto onde temos um aparelho que sintoniza o som da TV. Depois do Jornal, o Mais Você. Comecei a ouvi-la, baixinho, ruborizada, com receio. Quando anotava uma receita boa, fazia, sem contar de onde havia tirado. Aos poucos fui aproximando a cabeça, depois a orelha, depois desci a escada e depois a TV da sala ao vivo e em cores. Lá estava você e seu Louro, as gargalhadas inteiras, as perguntas de quem finge não saber, o comer debaixo da mesa.

Você me pegou. Ainda bem não sou resistente às coisas boas.

Um dia veio a notícia de sua doença, a sua conversa olho-no-olho com os espectadores, o mundo da mídia caindo sobre o assunto. Não sei o que senti, afinal, minha amiga Namaria estava doente e eu impotente, sem nada que pudesse fazer. Diante das câmeras deve ser fácil ser brava, ser forte, corajosa. Mas, e quando ela fica sozinha, na hora da insônia, do banho, da reza. O que se dirão a mulher e a eternidade?

Sempre fui muito apegada ao meu pai, que morreu em setentaenove, e achava que seria arrumar o seu corpo no caixão e preparar o meu. Não morri, minha dor sobreviveu ao tempo. Mas tive seis anos depois, uma doença autoimune, dessas onde os glóbulos brancos enlouquecem e se batem uns nos outros, e a gente fica como que desencarnada. Tomei remédios fortes, cortizona, ovos galados e sei lá mais quê. Um período de baixa imunidade, baixa estima, tudo indo pelo ralo. Foi então, que iniciei minha análise pessoal. Falava, falava, e ouvia. Parei os remédios, reiniciei a carreira, me casei novamente, me aproximei de pessoas leais e amigas. Comecei a fazer esporte, maratonista de provas aquáticas e terrestres para compensar a grande paixão pela boa comida e os vinhos.

Não sei quanto tempo você vai agüentar nesse ritmo de programa ao vivo, ontem recebi uma carta de amiga querida dizendo, Chorei desavergonhadamente, hoje mais um outro tanto, mostrei pra todos aqui de casa que a mulher maravilha, fora ter morrido, já foi enterrada.

Muitas vezes precisamos enterrar a super, para darmos lugar à mulher comum, ao ser amável e amoroso que existe sem maquiagem, sem cabelo penteado, sem perfume. Ana Maria, você já se mostrou, já se fez conhecer. A gente sabe que você não é loura. Sabe também que as palavras têm poderes salvadores e curativos e essas suas conversas todas as manhãs, sobre sua luta, sua química, seus enjôos, transformam o seu inimigo íntimo em alvo exposto. É fácil sair da armadilha se você tem consciência de que está dentro dela. Pense agora em descansar um pouco. Você já deu o recado.

E mais do que tudo o que eu possa dizer, obrigada, Ana Maria, por me mostrar que é possível ver TV pelas manhãs, por tirar a carapaça de minha autosuficiência e me ensinar como se faz a calda de açúcar queimado no ponto certo. Tão simples quanto isso. Meu amor e meu remoto afeto.

May Parreira e Ferreira

 

 
 
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