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TEMPO E O ATO
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Luís
Valise
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Eu já vinha de olho nele há tempos. Passava assim, como quem nada quer, e levava tudo ao seu redor, num roldão. Não era espalhafatoso: macio como uma superfície envidraçada, escorria silencioso como os passos de um felino traiçoeiro. Na verdade foi se tornando subitamente importante, mas só depois que te conheci. Antes era como se não existisse, reflexo da minha própria ausência. Anacreonte foi assim chamado porque sua mãe gostou do nome, e era tão singular quanto. Anguloso sem ser magro, longilíneo sem ser alto, era feio e irmão de Ataxerxes, e esse nome fora o pai quem escolhera. Como se adivinhasse que o filho seria lerdo e atarracado. Infelicidade não dura para sempre, e um dia Anacreonte conheceu o impossível: Nefertite, que se chamava assim porque queria. No papel mesmo seu nome era Alzira. Jamais perdoaria os pais por isso. As pessoas se atrapalhavam com o nome novo, esqueciam o antigo, e diziam simplesmente oi: Oi, vem cá. Oi, que roupa chique! Oi, leva eu. Anacreonte se apaixonou de cara. Foi pá-buff! Ataxerxes demorou mais um pouquinho, o tempo de ver o irmão se esbaldando: Oi, não faz assim que você me mata! O Ataxerxes também queria morrer. Nefertite gostava do Anacreonte. Por baixo da mesa o pé da Alzira alisava Ataxerxes, que morria de inveja das mortes do irmão. O tempo foi passando e tudo acabou em família: um dia Anacreonte dormia com Nefertite, outro era Ataxerxes quem acordava com Alzira, e entre gregos e troianos todos se salvaram. Menos os filhos, que teriam algum trabalho: Xenofonte, Xantipa, Zoroastro e Ptolomeu. Por trás da vidraça embaçada um rosto me vigia. Não ri, nem chora. Observa e espera. Nefertite me escapa. |