SANTA
INQUISIÇÃO
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Lisa
Simons
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Os
sonhos eram freqüentes até os seis anos de idade. Ela era levada por uma
trilha sombria, vestindo uma túnica cor de avelã, mãos atadas por uma corda
grossa, pés descalços em carne viva...
A conduzia um cortejo de homens rudes a lhe dirigir impropério, gritando em coro - Fogueira! Queimem o diabo! Ela pedia clemência e água. Cuspiam em seu rosto, riam de seu desespero, atiravam-lhe pedras, todavia nunca chegava até a fogueira enorme, pois quando isso acontecia era despertada aos prantos por sua mãe que a confortava: - Não é nada minha filha, volte a dormir, vou rezar uma Ave Maria. Não havia, entretanto, Ave Maria, Padre Nosso, nem Salve Rainha que desse jeito nos pesadelos, eles eram recorrentes e a angustiavam quase todo dia, até desaparecerem completamente quando fez sua primeira comunhão mas a lembrança do possível flagelo, acredito, ficou recalcada, pois desde então ela tenta se punir pelo fato do castigo nunca ter se consumado. Como toda criança odiava legumes e verduras, nem por isso deixava de encher o prato de folhas, cenoura crua, cebola, quiabo e até jiló. Comia tudo num sacrifício enorme, esperando os parabéns pela façanha repulsiva ao paladar. Na escola detestava a tal da gramática, história nem se fala, contudo passava horas decorando a conjugação dos verbos, os advérbios, preposições, interjeições, bem como o nome de todos os grandes e pequenos heróis, as datas, lugares e os porquês de acontecimentos até banais. Amava o teatro, a pintura, a dança, o canto, a Filosofia, contudo optou pela Matemática, a Geografia e a Contabilidade. Torturava-se com as integrais e diferenciais, passava as noites em delírio compulsivo resolvendo problemas intermináveis, colocando na geometria absurda de seus devaneios, todas as pessoas que não eram de seu agrado. Memorizou todos os acidentes geográficos, todas as capitais do mundo, explicava as oscilações do mercado, as razões do desenvolvimento ou do fracasso dos planejamentos. Capitalismo, comunismo, tudo entendia, dissertava sobre micro e macro economia, um tédio sem fim, um verdadeiro saco! Concurso público fez vários em todos passou, foram horas, dias, meses de estudos, noites debruçada sobre os livros, dedos cheios de calos, lentes duplicadas a cada novo exame. No íntimo se deliciava, ainda era pouca a sua penitência desejava um pouco mais de atividades. No trabalho se enfronhou na auditoria. Livros e documentos imundos lotavam sua mesa, seus armários. Registrar fatos e atos que retratavam quase sem nenhuma confiabilidade prejuízos e lucros das companhias passaram a ser seu calvário. Os gráficos, as tabelas, os relatórios seu passatempo nos finais de semana, abria mão até do cinema uma das poucas fugas a suavizar sua rotina dura, caótica, sem nenhum agrado. Não satisfeita com tantas provações, ainda procurou ser enquadrada seguindo durante algum tempo uma carreira paramilitar. Ali seus dias foram terríveis, antítese de seu perfil anarquista, via tudo que abominava, até a humilhação de seus ídolos. Treinava tiro, judô, natação em água gelada, corria debaixo de chuva fria ou sol escaldante, tudo tolerava como se não fosse o bastante. Quando as leis, os processos cruzaram seu caminho, se resignou aceitando os mais pesados, lotados de armadilhas. Reconhecimento nunca teve, elogios tampouco, mas isso não a incomodava era uma imolação, uma sina, que lhe deveria atormentar o sono e até as férias anuais. No amor sempre procurou a pessoa errada, aquela que nada tinha em comum com seu temperamento passional, fiel, compenetrado. Eles sempre falavam palavrão, só gostavam de futebol, eram mulherengos, fins de semana invariavelmente embriagados. Nenhuma afinidade, muitas frustrações. Quando aparecia um gosto, uma possibilidade, ela tratava se sabotar essa vontade, bem assim qualquer vocação que lhe pudesse trazer felicidade. Ela tinha um inimigo íntimo a consumi-la, impiedosamente, melhor seria que os sonhos se consumassem e numa catarse ardesse nas chamas da fogueira, cheia de dor, mas redimida. |