JOGOS
AO SOL POENTE
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Fernando
Borba
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O
casal de velhos, na varandinha, ocupava suas cadeiras de balanço. Dali se
via o jardim de ciprestes e a rua, com um ou outro ônibus em direção ao
subúrbio. Era quase o mundo inteiro.
Ela, vendo de esguelha que o outro cochilava, continuou a contar a história antiga, mas enxertando agora seu ressentimento por aquela falta de atenção. Quando o velho espertou, ela calou-se, fazendo com a cabeça um trejeito de agora não adianta mais. Tinham ficado no ar, porém, as palavras chuva, jardim zoológico, e por ali ele segurou o fio da narrativa. "Sim, naquele tempo o zoológico era muito bem tratado, elegante. Dizem que hoje não há mais bancos, ninguém senta mais. Naquele dia ficamos conversando, sentados num banquinho, até a chuva cair." "Não senhor, não senhor" - replicou a velha. - "Ainda saímos a passear, e estava estiado. Era perto do pavilhão coberto, perto da jaula dos ursos, mas você queria ir para a dos macacos. Uma lufada soprou, muito fria, e eu bem que disse: olha que vai chover." "Os elands. Eu queria ver os elands." "Que seja, aqueles bichos sem graça." "Mas foi divertido, afinal" - tornou o velho, conciliador - "Corremos para debaixo das amendoeiras, ficamos lá abraçados"- e por segundos seu olhar ressuscitou emoções longínquas. "Mas eu, eu é que sujei meus sapatos e a barra do vestido. Até quebrei um salto, foi um vexame, todo mundo no bonde reparando. E como a sombrinha de pouco adiantou naquele temporal, fiquei toda molhada. Por sua culpa". O velho, tendo perdido a boa vontade, pôs-se a assobiar baixinho. Ela começou a cantarolar uma modinha em ritmo bem diferente, para atrapalhar. Por momentos, aconteceu uma disputa entre o assobio de um e o trinado da outra, mas o velho insistiu. Subiu o tom, sustentou bem a melodia, abafou completamente o canto que já fraquejava. Ela terminou vencida, mas, de repente, mudando a estratégia, passou a rir, um riso de mofa, de menosprezo. Às vezes gargalhava, levantando o queixo, afetando ridicularizar, enquanto disparava rápidos olhares de soslaio para o velho. Fez-se severa: "Olha o cafajeste! Meu Deus, quanta vulgaridade! Na casa de meu pai não se admitiam assobiadores". O outro, com raiva, deu várias clarinadas fortes. Depois alisou a calva, pigarreou, e preparava-se para uma ripostada mortal, quando o telefone tocou. A velha, mais ágil, curvou-se antes para a mesinha e apanhou o fone. Todos os dias ligavam os filhos, os netos. Acompanhavam a vida dos velhos, e em domingos alternados os visitavam. Abasteciam a casa, conferenciavam com a empregada sobre as necessidades, os problemas. Ultimamente as refeições eram trazidas no quarto, para prevenir caminhadas desastrosas. Liberados de qualquer esforço, os velhos rabujavam todo o dia juntos, sem nada que fazer. Quando assumia o telefone, a velha fingia segredos, assuntos próprios, interesses exclusivos que o outro não devia conhecer. Ficava séria, como quem ouve revelações profundas, e de repente ria, afetando se divertir. O velho, aborrecido, tomava o jornal e afundava na leitura, exageradamente absorto. Os mistérios redobravam, apareciam enigmas: "E ele, o que fez? Nossa, não me diga! Que coisa! Claro, claro, somente entre nós, ninguém deve saber" - e fuzilava o companheiro com miradas laterais. Ao meio-dia, almoçados, tentavam uma sesta. Mas cochilar só era possível se a modorra os apanhasse ao mesmo tempo, do contrário o insone cutucava o outro, levantando assuntos para mantê-lo acordado. "Olha lá, pessoas da sua idade não devem dormir depois do almoço. Logo você, que tem a digestão péssima" - o velho provocou. "Olha quem fala em digestão. Não fui eu que fiz aquele papelão em casa dos Morais, incomodando, pedindo sal de frutas, chá de erva doce. E depois, no teatro, com soluços nojentos".- Sorriu, cortante: "E por ironia, logo quando você se pavoneava para a meretriz da Elisa". "Eu e Elisa? Só mesmo sua senilidade pode explicar isso. Aliás, acabei de ler que as velhinhas perto dos oitenta começam a perder completamente os neurônios. Que Lucilo Cardoso não saiba." "Veja bem como fala. Lucilo Cardoso Cavalcanti de Albuquerque sempre foi um perfeito chevalier, nunca iria soltar arrotos numa reunião de sociedade. Nem comportar-se como um Don Juan frustrado, feito alguns que conheço." "Dom Lucilo, o Cavaleiro da Lança Arriada" - debochou o velho. - "Elisa que o dissesse". A velha levantou, furiosa: "Se pretende usar os poucos neurônios que lhe restam para inventar obscenidades, é favor deixar meu quarto". Aos poucos acalmou-se. O velho já se rendia ao cochilo. Ela ficou a se balançar, olhando as nuvens que vagavam por cima dos ciprestes. Formavam desenhos, bichos, caras antigas, lembranças do tempo distante, agora era um grande cavalo branco, a crina se alongava, era um piano branco... Seus finos dedos correm o teclado, uma valsa, o rosto dele, uma dança, uma correria entre risos pelo jardim, rosas, brilhantes gotas de orvalho, seu vestido branco sobre a pele macia, a boca, as mãos, uma desconhecida pressão nos seios... Despertou ouvindo um gemido. O velho remexia-se, inquieto, terminou confessando uma dor espessa no peito. Dobrava-se ao meio na cama, um suor gelado molhando as têmporas. A empregada trouxe o comprimido sublingual e compressas para o estômago. Chamaram o filho, que não pôde vir, mas aconselhou o de sempre. À noite, a velha, assustada, imaginou sentir um mal-estar e a mesma dor no peito. Sentou junto do velho, pôs no colo a cabeça calva, afagou o rosto murcho. Choramingou. O velho abriu os olhos, sorriu, enlaçou-a pela cintura. Velaram-se por toda a noite. A cada estremecimento, repetiam os cuidados. Puxavam a coberta, agasalhavam-se, preocupados com o frio do companheiro. Serviam-se de água, indagavam-se, solícitos. De madrugada, quando o sol começava a dourar as cabeleiras dos ciprestes, foram vencidos pelo sono, muito juntos. Abraçavam-se com força. Não fosse um partir sem o outro. |