FOTOGRAMA
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Rosi
Luna
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Recife, anos 80. Meu dindi, Já queria ter te escrito uma carta, mas nunca soube com que palavras começar. Talvez se contasse um pouco da nossa história ajudasse a relaxar. Deixa abrir uma lacuna, um parêntese no momento atual e colocar (você) no meio. Era o baile dos Artistas - um encontro da comunidade cultural, jornalistas, pintores, artistas, poetas - a nata da sociedade marginália. Lembro da fantasia do Jomar, ele vestido de guerrilheiro cultural, tava divino e ainda mais, achei tão significativa. Pela cultura a gente tem que metralhar mesmo, até conseguir atingir o objetivo que é de caçar os não aculturados. E dar o que o povo precisa. Além de comida, o povo precisa de arte e cultura. Tem uma época na vida em que a gente sempre é estagiário e tenta aprender alguma coisa. Consegui ganhar a seleção do estágio depois de terem escolhido uma simples frase minha, feita com "letraset" (letrinha que se aplicava no papel fazendo pressão com um marcador). E virei a garota estagiária de uma agência de publicidade. O pessoal da arte era todo masculino, e eles sempre tratavam de dar um jeito de fazer com que as estagiárias ficassem pouco tempo. Quando cheguei, eles cantavam uma música de letra indecente, falando palavrões e coisas do tipo "sou o lobo mau e vou te comer". Não me choquei nem um pouco e, pelo contrário, disse. - Deixa copiar a letra, cantem devagar. Nesse dia ganhei a confiança deles e viram que não ia ser fácil me expulsar dali. Nós recebemos um convite na Agência para o Baile dos Artistas e claro que fui e fiquei na mesa com o pessoal, que por sinal se esbaldava na cerveja. Fazia um calor insuportável no andar térreo e resolvi ir para o terraço no piso superior, pois lá talvez soprasse uma brisa. Quando estava no final da escada passou por mim um casal de gays com uma fantasia de pom-pom colorido. Eles me deram um esbarrão e, não sei como, caí por cima de um flash que estava carregando na parede. Foi aí que você me viu. Pensei ter dado o maior prejuizo. Não esqueço a sua fisionomia, olhando para mim, rindo e falando. - Mas ora ora, quanta honra para o meu flash ser atropelado por uma bailarina. O terraço estava bem mais aprazível e fiquei algum tempo ali de papo com aquele fotográfo. Ele não disse o seu nome, nem pra quem estava trabalhando. Saí do terraço e também não disse como me chamava e, não sei porquê, gostei do seu sorriso e algo me dizia que ia vê-lo de novo. Mais tarde o acompanhei com os olhos fotografando o concurso de fantasia. Você passou pela mesa e cumprimentou a Iracema - a jornalista da agência -, foi embora e só me deu uma piscadinha. Mais nada, nenhuma palavra. Aqui abro um parêntese (quando a gente quer achar, a gente acha - são palavras suas). Recebi um telefonema no dia seguinte. - Alô! É a bailarina de vermelho? - Sim e quem é você? - Sou aquele fotógrafo que você destruiu o flash. - Como me achou? Não lembro de falado nada com você. - Liguei hoje para a Iracema e perguntei quem era a bailarina. - Ah! Sei. - E ela me disse "é a nova estagiária". Dei uma de díficil e acho que te conquistei aí. Mas depois de uma semana, resolvi aceitar o convite para sair. O cenário era de uma beleza que só o Nordeste tem, aquela coisa regional, aquele cheiro de maresia, de tapioca. Foi em Olinda - barzinho na Sé, com toda aquela vista. Nós tomamos água de côco e aí é que fomos saber o nome um do outro. Isso era um mero detalhe, nós nos entendíamos bem com o olhar. A primeira vez que fui à sua casa demorou muitos meses e o nome do prédio particularmente me chamou a atenção - Ed. Paris. E foi esse edifício que abriu um novo parêntese na minha vida (era o endereço do amor). Ali fui amada em minha totalidade, rosto, corpo e palavras. Nós nunca tivemos um compromisso assumido. Você era contra casamentos e jurou que nunca ia fazer isso. E realmente cumpriu, você partiu desse mundo sem se despedir, como sempre fez, rodeado de surpresas e mistérios. Nós fomos amigos, namorados, casados sem aliança, amantes - uma bailarina e um fotógrafo presos num fotograma. Nós eramos uma equipe, você fazia a imagem e eu colocava os títulos ou as legendas nas suas fotografias. Um dia você me perguntou "Mas onde estão os acentos dessa frase?" e eu falei "Olha debaixo da mesa". E você fez aquela cara de quem estava procurando mesmo, não posso esquecer o tom sarcástico. - Menina, você é uma rebelde da gramática. Acho que sempre fui, não que ache bonito não colocar pontuação, parênteses, vírgulas. Mas é que comecei a brincar com isso e não consegui mais parar. Pode ser um defeito meu, ou será um estilo perder vírgulas pelo caminho? O certo é que aprendi a escrever sobre o que sinto e às vezes nem paro para respirar a frase, como agora, estou quase sem fôlego. Aprendi com você que não devemos amar uma pessoa pelo cargo que ela tem, nem pela pontuação dela. Você demorou um mês para me contar que trabalhava para uma das melhores revistas do Brasil. Depois entendi o teu objetivo, de querer que eu amasse primeiro a sua essência, e depois, no momento certo, conhecer tudo sobre você. Posso contar da nossa primeira vez, daquele seu abajur sanfonado. Você gostava das coisas dos japoneses: palitinhos, abajur de papel, origami, sushi no barco. - Japônes muito detalhista, non. Era assim que você brincava. Eu ainda não tinha ido a Paris, mas estava no edíficio que tinha o nome da cidade luz. Lembro do barco que virei, com todas aquelas comidinhas espalhadas e você arrumou tudo na minha barriga e foi assim, no meio daqueles peixinhos crus, que mergulhei nas profundezas do seu amor. Você consegue me entender, já se passou tanto tempo, tive outros amores, abriram-se outros parênteses. Entraram novas pessoas na minha vida. Mas aquele fotograma não me saiu da memória. Será que você consegue entender porque gosto de Paris, gosto de comida japonesa e de fotografia? Será que você consegue entender porque odeio máquinas? Será que você consegue me explicar por que falou que um dia eu seria uma escritora, pois sabia escrever o que estava sentindo? Eu não era nada quando te conheci e continuo não sendo, mas tenho aquilo que você disse que uma mulher precisava ter: tenho leveza nas atitudes e nas palavras. É uma característica de bailarina que você amou muito em mim. A graça de um corpo esguio e a graça das minhas palavras doces. Vou soprar no seu ouvido e essa carta vai chegar, pois tenho raciocínio mágico, você também me disse isso. Posso ser uma fada, posso ser o que quiser. Acho que me contento em ser só amada e ter minhas lembranças. Estão guardadas na minha caixa do coração: você, o ar de Paris e as imagens. A bailarina e o fotógrafo viraram personagens de carne, sangue e mel, como diria alguém que conheci. Será que coisas do acaso, esbarrões, são sinais seus? Preciso acreditar mais em astrologia e observar mais os estágios da lua. Como se termina uma carta? Um beijo onde quer que você esteja, "quando a gente quer achar a gente acha." Te encontro em algum lugar. Talvez você apareça disfarçado ou com alguma forma de mistério para me seduzir. Prometo tentar desvendar e descobrir quem é você... Um beijo na tua alma que me ensinou tanto, coisas que o diploma nunca me deu conhecimento. De vez em quando sinto que tem alguém me fotografando de costas, será que é você? acho que sim... PS. essa crônica é uma homenagem, amei um fotógrafo da revista Veja que depois ocupou o cargo de editor de fotografia de um jornal e que foi embora desse mundo de uma forma muito brutal - um assalto, ele fotografava as ruínas de uma igreja. As minhas vírgulas continuam debaixo da mesa, prometi nunca mais amar ninguém, mas não cumpri. Tenho amado na medida do possível. Não consigo gostar de máquinas, elas não têm sentimentos e não têm lágrimas, como essas que estão caindo agora. |
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