AUTO-FLAGELAÇÃO
4 - O COMBATE
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Roseli
Pereira
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Hoje eu comecei o meu dia tentando abrir parênteses para arrumar o cabelo. Se não fizer disso a primeira providência da manhã, depois não consigo nem abrir aspas. Muitas vezes, nem um paragrafozinho só pra mudar um pouco de assunto. Mas, como você bem reparou, eu disse "tentando". Porque, no meio do caminho para o cabeleireiro, a minha coleira eletrônica tocou e me trouxe de volta para o texto principal. Desta vez, urgências no escritório. Pra ser sincera, até onde a minha vista profissional alcança as tais urgências nem eram tão urgentes assim. Mas o fato é que, de lá até agora, as frases foram se emendando de tal maneira que não sobrou espaço nem prum asteriscozinho. Não sei se é defeito de projeto ou de fabricação do ser humano em geral, ou se atinge só os que têm o meu número de série mas você já notou como aquelas coisinhas tão simples, que são tão importantes pra nós, sempre têm que ser encaixadas na marra entre parênteses? O resto, ou seja, tudo aquilo que envolve o mundo inteiro (por menor importância que tenha), não. Acho que quando a gente nasceu já estava escrito que trabalho, família, casa, amigos, colegas, clientes, fornecedores, conhecidos, desconhecidos, cães, gatos e automóveis, entre muitas outras coisinhas, sempre teriam horário nobre reservado no nosso dia, ainda que aparecessem do ralo. Assim, sem mais nem menos. E aquelas sensações básicas e tão gostosas, como a de um cabelo crescendo com dignidade, um banho (bem) mais demorado e até mesmo a leitura daquele livro que simplesmente pulou na sua mão durante a última visita à Fnac ficam, invariavelmente, guardadinhas para depois. Para a madrugada, por exemplo. Ou para algum espacinho que você eventualmente conseguir. Provavelmente naquele momento maravilhoso do dia em que, finalmente, você abre os seus parênteses desligando o celular. Se é que você consegue desligar o celular. E a internet. E o telefone. E, sobretudo, os neurônios. E aí você me pergunta: toda essa revolta só por causa do cabelo? E aí eu te respondo: o problema não é o cabelo. É que eu nunca consigo pagar, sossegada, o meu tributo mensal à auto-flagelação. E ponto final. |
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