Tema 035 - PARÊNTESES
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PALHAÇO DO TRÂNSITO
Lisa Simons

Os personagens:

Roberto Carlos da Silva (codinome BETO), pardo, 23 anos (aparenta bem mais), solteiro (uma ex-companheira), filho de Severina da Silva e pai desconhecido, profissão: ator (formado em Artes Cênicas), ocupação: palhaço do trânsito (no trânsito é o motorista), residente no Ibura de Baixo.

Maria Elisabeth Bezerra Alcântara Castro Morais Rego Mota (carinhosamente apelidada BETA), branca, 40 anos (faz o possível para aparentar 25 e diz ter 33), solteira (costuma dizer que foi casada com um italiano, mas não suportou o frio dos Alpes), filha de Maria das Graças (todos os sobrenomes de Beta) e Eugênio Rego Mota (usineiro, aposentado como vereador), profissão: funcionária pública (há tempo nomeada irregularmente por um tio político), bacharel em Direito (nunca advogou), residente em Boa Viagem.

(Um parêntese: aqui, no Recife, optou-se por usar palhaços na educação do trânsito. A maioria selecionada foi de atores desempregados. Eles ficam nas esquinas mais movimentadas orientando o pedestre a atravessar na faixa e o motorista incauto a observá-la. São coloridos, engraçados, não multam, não falam, utilizam-se de gestos e fazem, principalmente, a cabeça das crianças, porque a do adulto já está corrompida e na próxima esquina ignora o ensinamento.)

Primeiro Encontro:

Dia e local: Av. Boa Viagem, esquina da Carapuceiro, sábado, pela manhã.

BETA indo à praia, caminhando, como sempre sozinha, livro de auto-ajuda na bolsa transparente, biquíni de grife, discreto, apenas um lenço de seda envolvendo os quadris, pára no sinal.

BETO vestido de palhaço, cabeleira redonda, cheia, multicolorida, segura o trânsito, gesticulando as mãos enormes, envoltas em luvas brancas, indica, pode atravessar.

Um motorista irresponsável ultrapassa pela direita um veículo parado, O palhaço agarra BETA, pela cintura, evitando o atropelamento. Ela continua aninhada ao corpo do palhaço imenso por alguns instantes, até seu coração bater ritmado novamente (o coração de BETO também disparou, mas pela proximidade dos seios perfumados da mulher mignon e de seus cabelos macios roçando-lhe um pedacinho do pescoço, livre da tinta branca).

- Obrigada, ela disse, (tinha voz de professora), ele pensou, rolou uma emoção, um desejo.

Segundo encontro:

Sábado seguinte, o palhaço fazendo piruetas, braços abertos (senhora envergadura!), BETA atravessa a avenida, sorri levemente, sem fitá-lo.

Terceiro encontro:

Ela na praia, protegida pela barraca, tomando água-de-coco. Ele aproxima-se (sem as vestes de palhaço é claro) dorso moreno, cabelos negros cortados rentes. Puxa um papo, pergunta-lhe o nome, achando graça da coincidência, ela se chama BETA!

Falam de tudo, papo erudito, principalmente de arte, até ele pegar o protetor solar para passar nos ombros e ela perceber alguma tinta no canto de suas unhas. A pergunta inevitável, o que você faz? Ele não podia dizer sou palhaço, aquele que a agarrou pela cintura, lembra? Isto nas cutículas é resto de maquilagem. Preferiu inventar uma atividade mais glamourosa, na sua opinião menos humilhante:

- Sou artista plástico, faço grafites, grandes telas, algumas instalações, minha visão é minimalista.

Ela amou, toda vida esperava encontrar alguém assim, um intelectual!

Um encontro depois:

BETO era só contentamento, não a tirava da cabeça, via seu perfil miúdo, sentia seu cheiro, em cada esquina, entregou-se a esse amor, como a tudo em sua vida - completamente. Ela já era um pedaço de seu abraço, já a imaginava aplaudindo-o no palco, depois de encenar Hamlet (até então, remunerado, seu melhor papel fora de Lampião, mesmo assim, num teatro improvisado. Seu tipo nordestino, o sotaque carregado, não se adequava às propostas do teatro elitizado, que ele imaginava para si).

BETA abriu a guarda e se entregou, já estava completamente atraída por seu perfil, ele curtia a natureza, adorava percorrer trilhas, tocava violão e cantava. Ela nunca fora assim tão desejada, aliás nunca fora amada como mulher verdadeiramente, ela bem sabia disso. Os encontros eram eventuais, mas de uma intensidade nunca antes experimentada. Já imaginava a possibilidade de se ligar a Beto, definitivamente, apesar da diferença de idade.

(Mais um parêntese: agora as autoridades do trânsito, resolveram orientar os motoristas a obedecer ao limite de velocidade na área urbana. Os palhaços ficam apostos nas vias mais movimentadas, debaixo de chuva ou de sol, nas quais os veículos chegam a desenvolver até 120 km/h, com uma plaquinha redonda indicando o limite máximo: 60.)

O último encontro:

BETA no seu carro, velocímetro marcando mais de 80, desce do viaduto Joana Bezerra, no sentido centro.

BETO na descida, com a placa indicando 60. Muita chuva, ele tentando se esconder debaixo de um guarda-chuva.

Ela avista o palhaço, liga os fatos, reconhece BETO atrás da máscara, reduz seu carro abruptamente.

O veículo atrás do seu, ignorando a distância mínima de frenagem, não tem outra opção, se desloca à direita, tentando ultrapassá-la, escorrega na pista molhada, atravessa a calçada e atropela violentamente o palhaço, que cai já sem a peruca e o nariz de bolinha.

No mesmo instante forma-se um círculo em torno dele. Beta também se aproxima, ele fita o rosto amado, como se fosse o do anjo salvador e tenta balbuciar alguma palavra, ensaia um movimento com as mãos na sua direção, mas um estremecimento involuntário toma conta de seu corpo coberto de sangue.

BETA fica ali parada e um senhor ainda lhe pergunta - O palhaço é seu conhecido? Ela balança a cabeça numa negativa, entra no carro, obedecendo ao policial que mandava desobstruir a pista. Precisava fechar esse parêntese de sua vida.
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