Tema 034 - LABIRINTO
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A CARNE TRÊMULA
Renato Bittencourt Gomes
Esse comboio de corda
que se chama o coração
- Fernando Pessoa

Há séculos sabemos que o corpo humano é uma máquina perfeita, e que nela tudo foi projetado para funcionar com equilíbrio e harmonia. Sua distribuição, o arranjo entre as partes, é fruto de um cuidada engenharia. Mais que isso: nossa pobre carcaça adentra os domínios da arte, pois podemos mesmo falar de uma meticulosa arquitetura. É só assim que consigo explicar a existência, dentro da cabeça, desse caprichoso ladrilho de salas e corredores, pistas e fundos falsos. Cada coisa em seu lugar, tudo disposto para, entrando ali, não ser mais possível a saída. E para que sair, se muito há a percorrer nesse pavilhão coalhado de esquinas, loteamento de escaninhos, depósito sombrio?! Apura o ouvido: são os passos perdidos de um caminhante solitário.

Não é, porém, o caso de ficar assombrando. No fundo, estamos em um sítio higiênico, um mistério para gente civilizada: o parque de diversões da mente, uma sessão sabática na televisão, um velho filme policial inglês. Labirintos são coisa mental, são bons para pensar. Convém se perder, não se desesperar. O jogo é esse: perder e reencontrar, e todos somos sportsmen. Ao abrigo da boa sociedade, nada será fatal, ninguém deixará de comparecer à happy hour. Melhor que tudo, as peripécias do dia animarão a amena conversa. Depois iremos para casa, encontrar nossas esposas, alheios a todo perigo. Eis o mundo à imagem e semelhança do bom burguês.

E contudo cumpre assinalar que o perigo mora atrás da curva, pelo que recomendo cuidado: há mais mundos. O painel é tranqüilo, mas ninguém está livre da tentação de deixar que o olho resvale em busca de outras paragens. E, se descemos da cabeça para o peito, encontraremos o coração, pátria de um outro panorama. A primeira dificuldade para a sua descrição está na fixação do objeto, engrenagem úmida, móvel e pulsante. Aqui não há paredes limpas, ladrilhos: tudo é carne e sangue palpitando. O rincão é desordenado, berço de toda loucura e desejo, de toda coragem e beleza. O músculo cardíaco, pequeno punho em eterna alternância entre aberto e fechado, tem qualquer coisa de indefinível, pois é o motor de toda existência física e, ao mesmo tempo, recolhe os sopros e hálitos da matéria incorpórea.

E talvez a alma seja isso: esse alento, essa voz que circula dentro do coração. É por isso que, quando tenho meu corpo encostado no teu, quando estou dentro de você, procuro estar atento aos sons que você produz. Então te beijo, sufocando tua voz e teu gemido, pensando que assim recebo na língua o gosto da tua alma.

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