O
PRIMEIRO VÔO
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Paloma
Weissmann
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"Sou
uma gaiola vazia. Matei o meu pássaro. Chutei um cão que pedia carinho.
Tenho tantos pecados a expiar que poderia criar minha própria religião.
Eu seria a redentora, a pecadora, a que implora perdão e que não se perdoa
jamais. Não lerei o Grande Livro, não vou encontrar um salvador debaixo
dessas folhas finas e sujas. Me estrangula o rosário, um crucifixo me
masturba."
Ela deixa de ouvir. Foi de todos, talvez um dia seja de si mesma. Ela se cortou com a gilete. Pontos de sangue se eternizam nas paredes. Pontos distantes. As crianças da vizinhança os ligam com lápis. Ela já não liga. Na drogaria 24 horas os porcos voam e as gôndolas viram labirintos onde as paredes riem. Ela já não sente outros cheiros. O homem não mais pergunta. O pacote é oferecido, e entre o homem e o pacote, frios, o braço estendido é uma ponte para a salvação - que ela não cruza. O velho (viciado em efervescentes, pornografia e anfetaminas) olha suas pernas. As meias grossas ocultam os cortes. Pernas esguias, joelhos pronunciados demais. Ela teve deles uma vergonha orgulhosa aos quinze. Então queria ser modelo, atravessar passarelas e países. O mundo. Agora há a rua por atravessar. E olhos que não mais vêem. E pessoas que não sabem. E carros que não buzinam. E, ainda que buzinassem, ela não ouviria. Meio-dia. Apito da fábrica. Meninas correm pelas calçadas, sacolas leves chacoalham felizes. Ela pára. Ouviria a buzina? Mas não houvera buzina, apenas o apito. O velho solta a cesta plástica no chão, vidros espatifam. A farmácia corre para ver. As meninas interrompem a corrida. Um corpo espatifa no asfalto. Pontos e mais pontos de sangue mancham o pára-choque dos carros - que não haviam buzinado, mas agora explodem em sinfonia sincrônica. Réquiem. O apito da fábrica silencia. É meio dia em pontos de sangue. O pássaro da gaiola voa para longe. Vai atravessar países e mundos. |
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