Tema 034 - LABIRINTO
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O LEITO DE PROCUSTO
May Parreira e Ferreira
Minhas mãos estão geladas. Sei que o caminho é este. Noutra noite sonhei com trilha estreita de pedregulhos esverdeados. O homem dentro da caverna lambendo o fio de água caindo entre cavidades de pedra e musgo. Cena de livro, de sonho, já não sei. Qual direção tomar. O sol não se havia levantado quando saí. Terra estranha, perdida no centro da pequena ilha vulcânica indonesiana, referências outras, sentidos anti-horários todos. Mulheres com belos seios descobertos, cabelos longuíssimos, pés no chão e sorriso permanente. Onde é o meu ponto de partida, pergunto-me a cada momento. Por que me distanciei tanto, o que me faz ir à busca do impreciso. Onde a estrada asfaltada. Como me fazer entender.

Não consigo me mexer. Retrato de minha amada, está longe a madrugada, pergunta o príncipe negro infeliz em seu encanto. Caminhos entre rochas, mantas feitas de urtigas, flechadas no coração. Estou só a seguir pequenas cabras que cantando levam potes de leite entre os chifres. Preciso desvendar o mistério, tirar de mim o peso deste grosso xairel. Está quente aqui dentro e minhas mãos geladas não encontram conforto. O caminho é confuso. Exalo o odor do medo, pessoas correm ao meu lado, peles visguentas se interpondo, minha cabeça é uma entre tantas assustadas da horda, tomadas de terror ou loucura. O contato me entristece, recolho-me na concha dos nãos. Onde a saída? Destino incerto, fortuna contrária.

Meus pés estão gelados. O centro da capital espanhola, da capital paulistana, da cidade capital, está toda vida em frente, preciso chegar a casa. Já passa das seis da tarde. Estou numa auto-estrada chegando do sul. Cidades que não a nossa são todas parecidas, todas estranhas igualmente. Não será o centro de outra cidade, onde o guarda apita de cima de um banquinho em praça pública? Quero fazer o retorno. Quero parar, voltar para casa. Já estava tão perto, já sentia o cheiro dos presuntos pendurados, do açafrão no arroz, do feijão com torresmo. Carros todos, buzinas me empurrando. Cavalariças de Áugias, bois de Gerião. Preciso voltar à estrada. Onde o norte.

Pequena fresta de alívio, sinto o cheiro da madeira tocando meu corpo. Deitada neste deque, olho o céu que se esvaece em água transparente. As ondas chegam fininhas e se esparramam lentas numa areia branca, onde houvera nuvens agora espumas. Estou onde, fazendo o quê. Se mar lá em cima, então é céu onde repouso o corpo. Estou flutuando em terra. Aprazível sensação, quero continuar represada nesta suavidade. Macios, lisos pés de criança se esfregam em meus calejados sustentáculos. Velocinos de ouro, górgonas petrificadas, cordas de loureiros alçadas ao convés. Um jardim distante, um fogão de lenha e o cheiro do jasmim. Vulto de minha avó amassando o pão de mandioca. Chamas lambendo o ferro, pedindo água, gotas fervilhantes saltitando felizes no arco-íris de borralho.

Grito lancinante da suindara no meio da noite. Paralisia. O barulho externo faz-me lembrar das mãos geladas. Volta o peso, uma tristeza de lesma, não, de peixe-boi, massa gordurenta espalhada em toneladas imprecisas. Preciso voltar. Não sei o que acontece comigo, se me abro ou me fecho, planta -dormideira. De onde parti? Para onde estou indo? Quero sair, retornar à estrada asfaltada. Onde o norte.

Onde estou, pergunto. Sonho, morte, alguma coisa, comigo, com alguém, estou próxima, estou distante. Preciso de ajuda, um pé fora da cama, âncora da ressaca, pesadelo. O fio de Ariadne, onde.
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