Tema 034 - LABIRINTO
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RITUAL DE PASSAGEM
Marina Cardoso
Fundo - Cassia Eller
"Eu tava com graça
Tava por acaso ali...
bunda de mulata,
muque de peão"

Finalmente chego lá. Carregada de mala, mochila, mais bolsa, e a fila para elevador. Troco olhares. Mal sei que será início de uma série de vai vens de anônimos olhos que se cruzam tentando a busca de uma expressão que defina o plano comum: para onde vão tantos?

A espera é grande. Saguão tem poucos lugares e muitos fumantes. Oposto do aeroporto, aqui é smoking area all over. Fila para último telefonema de adeus? Até breve? Estou chegando...ah até nunca mais.

Leitura obrigatória: manchetes dos jornais. Alguns arriscam comprar palavras-cruzadas para ver se ajudam no passatempo deste templo de gás carbônico suspenso no ar que respiramos. Respiramos?

Com calma sento-me numa daquelas cadeiras enfileiradas para o mundão babel. Desfile sem produção começa: moço manco, garotão com mochila e colchonete que parece querer chegar ao fim do mundo liberdadeeee. Homem da pasta executiva que retorna ao lar depois da semana curta, garotinho carrega skate com capinha passa por baixo da roleta do xixi a R$ 0,70. Paga-se no café, na água e o gordo sorridente candidato modelo para Vigilantes do Peso não encontra assento que caiba fica rodando e olhando e rodando, até que come um Dunki'n Donuts lambusado.

A ansiedade é grande, clima é tenso com falsa alegria. Ninguém aguenta véspera de feriado. Para alguns serão poucas horas, um pulinho, um tirinho e estarão lá. Outros cruzarão estados geográficos e de alma para desembarque que pode mudar suas vidas, ou trazer-lhes de volta mais duros, frios, imunes a qualquer promessa não cumprida, expectativas não realizadas, sonhos roubados.

O grande relógio caminha no ritmo inverso ao templo que o abriga: minuto a minuto, mas cada minuto parece horas. Faltam dez minutos. Duas vezes cinco. Trezentos segundos em dobro...uauu seiscentos seguntos. Nada de voz sussurando gate number, aqui a palavra da locutora afirma solene e dura como a autêntica Voz do Brasil: Uberlândia plataforma 30.

Sigo por uma escada. Multidão rola empacotada e é jogada na boca dos escapamentos dos ônibus vrum vrum vrum, infectos poluidores. Leito comum ou executivo não importa. Hoje eles possuem uma aerodinâmica que sugere a doce ilusão que tudo será cômodo, que viagem será confortável e essa espera compensou.

Busco minha passagem, RG, e lá vou eu. Vizinha de uma mãe com criança pequena ou de um gordo que ronca e pula toda hora para ir ao banheiro...sei não. Sento-me e encerro meu expediente local. O motorista se apresenta simpático, dando clima de espaçonave: dá seu nome, locais de parada e arranca. Nem bem fui ver amigos queridos e já espero o retorno com a alma reciclada com rostos, paisagens, gargalhadas e histórias para contar, deletando este ritual de passagem às margens do Tietê.
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