O
OUTRO LADO DA CIDADE
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Tarciso
Oliveira
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As pessoas tentavam organizar
uma pequena fila improvisada ao passo que um dos funcionários, em vão,
contorcia as dobras da face com o intuito de causar desistência nos que
ali se encontravam. Era o motorista da picape. Com a sua eterna pressa,
aborrecia-se com os colegas de trabalho e com os miseráveis que sempre
se acumulavam ao lado da carroceria do veículo que transportava restos
de alimentos.
- Moço, por favor. Dá pra encher isso pedia uma pobre senhora, filho ao colo e uma vasilha dessas de margarina na mão. - Aqui! Tome o seu e... esse é seu... calma, calma! repetia um dos funcionários considerado um dos mais legais com os mendigos. Era uma cena que chocaria o mais insensível dos seres humanos. O restaurante funcionava diariamente para atender ao pessoal do comércio no centro da cidade. Os restos de comidas deixadas pelos clientes eram armazenados em dois tambores localizados nos fundos do prédio. Ao final de uma semana de armazenamento, e já cheios, eles eram levados para uma pocilga na periferia da cidade. Só os restos da parte superior dos tambores eram do mesmo dia. O cheiro era intragável, mas a fome não possui sensibilidade para a detecção desses detalhes tão insignificantes. - Que horror! Esse pessoal come isso! disse uma senhora, enquanto fechava a porta do seu automóvel do ano, que acabara de estacionar naquelas imediações. - Tem-se gosto pra tudo! comentou sua amiga caroneira. Alguns que já haviam sido atendidos pelo prestativo funcionário, voltavam para uma segunda petição. E regozijavam-se por terem logrado sucesso ao enganar o funcionário para a aquisição de uma outra porção do fétido alimento. Este, por sua vez, sabia o que se passava diante dos seus olhos, apenas não se animava em questionar quem quer que fosse por tão pouco. Era um bom homem. Vasilhames de toda a espécie eram agitados e mergulhados naqueles tambores. Garrafas cortadas pela metade, latas de flandres, velhas panelas, recipientes de margarina e até sacos plásticos. O tal funcionário atendia a todos incansavelmente. - Aqui! gritava um. - Segura! respondia outro. A alegria estampada naquelas faces nos incitava a um fenômeno ambíguo de felicidade e tristeza para quem os observavam. Mais uma vez o motorista falou qualquer coisa inaudível para mim devido à distância que nos separava. Foi fácil entender que ele iria embora naquele momento e não esperaria mais pelos outros. Os outros dois concordaram que a hora era chegada. A picape partiu levando os tambores da discórdia e, ao mesmo tempo, da alegria. Ao lado do restaurante, sob uma marquise de uma casa comercial em reforma, alinhavam-se encostados nas paredes uns seis ou sete mendigos os quais não tinham para onde ir. A refeição seria ali mesmo, ao ar livre. Eles se se entreolhavam com a satisfação de terem conseguido facilmente uma grande refeição para aquele dia e, assim, adiavam o momento sublime de degustarem a comida. A cena já não era tão chocante. Alguns mendigos, sentados numa calçada a comer qualquer coisa, já não eram novidade para mais ninguém, nem naquela e nem em nenhuma cidade do Brasil. Eu e alguns amigos estávamos ali esperando o ônibus que nos levaria para a firma em que trabalhávamos. Já há algum tempo que a firma definira aquele local como ponto de concentração para o pessoal da firma. Nunca, antes desse dia, havia presenciado tal cena. Segundo informações de comerciantes do lugar, semanalmente a cena era repetida e com os mesmos personagens. Por infelicidade nossa, naquele dia os carregadores dos tambores se atrasaram em uma hora. E, assim, eu pude conhecer um lado obscuro da realidade de uma grande metrópole que até então não conhecia. Dois dos mendigos ainda continuavam comendo quando eu me aproximei meio curioso, meio horrorizado. Ainda pude observar um deles retirando um pedaço de guardanapo de dentro de sua comida. - Olha Zé disse ele, o meu veio premiado! Sorriram alegremente, deixando-nos ver alguns vazios que substituíam muitos dos dentes de ambos os mendigos. Isto aconteceu há sete anos, mas nunca mais consegui esquecer a cena. Com raras exceções, posso afirmar que todos estavam bem alegres diante daquele lixo que lhes eram oferecidos. O povo brasileiro é um povo alegre e disposto. O que falta é um pouco de vontade política para que eles tenham a merecida justiça e pouco de comida. |
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