COMIDA
|
|
Samuel
Silva
|
|
Adoro comida japonesa e
não aceito desmentido ou reparo em meu gosto. Não se discute. Desvale
falar que aqueles palitos são trabalhosos, que não são práticos, que é
até anti-estético trazer a comida até no máximo o meio do caminho e depois
abaixar a boca até completar a rota. Você é que não sabe usar o hashi.
E se não se escreve assim a palavra o problema não é meu, é japonês, oras,
foi ocidentalizada a palavra pelo fonema. Eu sei usar o aparato e isso
é o que basta. Encher o potinho de molho de soja, misturar a raiz forte
e obter um molho forte, doce e picante é alquímico. Gosto da culinária
japonesa, mas apenas a dos crus, nada de yakissobas e aqueles pratos quentes.
Gosto de comer cru. Gosto até da palavra: cru. Salmão, atum, camarão,
kani...Tudo cru, menos os bolinhos de arroz. Não sei se adoro comida japonesa
por força da Ida ou o contrário, embora atualmente eu e Ida não tenhamos
nada além de lembranças nostálgicas que cada um devora em seu canto. Lembranças
requentadas, não cruas.
Tinha visto um documentário sobre culinária japonesa e o exótico hábito de comer peixe cru. Não, não foi recentemente, claro, nos dias que correm restaurante japonês virou angu do gomes, em qualquer canto tem. Tem até a kilo ou em porções de preço fixo. Quando assisti ao documentário foi em um Globo Repórter ou algo do gênero , não existia Discovery Channel ou People & Arts. Comentei com Ida na Faculdade (ou no cursinho, não recordo bem); ela disse conhecer a técnica e eu, tímido, fiquei no "arrã", maldito pigarro na garganta travando qualquer possibilidade de engatar uma terceira ou quarta marcha no diálogo, sempre em frente rumo ao desconhecido mundo dos prazeres da boa comida. Sorte minha que Deus protege os bêbados e os idiotas... Ida na verdade era Idalécia Altamiranda, nome composto, esqueci os nomes de família, mas ninguém, exceto o pai velho a chamava disso; ela era temporona, nascera quando os pais ultrapassaram a casa dos cinquenta, isso nos idos de sessenta. Uma mulher excepcional, como diria um artista plástico; do pai mulato herdou a pele ajambada, da mãe coreana os olhos estreitos e amendoados, parecendo oriental de desenho da Disney. Os cabelos eram finos, pretos e lisos, de um modo sobrenatural, um preto liso monolítico. O rosto era ovalado, de nariz pequeno e reto, uma boca também pequena, mas carnuda, de boneca de porcelana fazendo biquinho. Eu me perdia naquela boca em desvarios enquanto o professor dizia qualquer coisa sobre qualquer coisa naquelas salas como anfiteatros, todos em cadeiras formando um semicírculo e o parvo no centro, irrequieto como leão jovem enjaulado. O pescoço era perfeito em seu torneado e dava-lhe um porte imponente, esguio, e também feito era que não havia como os olhos nele se segurarem e escorriam, despencavam, até o rego dos seios, quase escondido em roupas discretas. Ida era discreta por temperamento, mas a natureza a fizera exuberante, berrante, fascinante, nem precisava de decotes ou de vermelhos nem de justezas. A cintura fina descaía em quadris largos e protuberantes, um achado divino que nunca mais, certamente, se repetiria, pois é sabido que ou a mulher bem tem ancas largas ou bem tem bunda atrevida, conquanto a maioria das mulheres não possa gabar-se nem daquelas nem desta. Vou dar uma parada, polir os azulejos de meu banheiro: a lembrança de Ida está chamando uma homenagem adolescente. Volto...Reli e me achei. Contava da comida japonesa. Pensei em refazer a descrição de Ida, talvez o tempo me tenha conduzido a uma idealização, mas deixo como está, é minha lembrança que narra e que importa fosse menos, se para mim é o mais? Ida, movida por algum sentimento oculto, talvez piedade de minha canhestra atuação galante, fez-me a proposta simplória de me apresentar a culinária de peixe cru para que eu não guardasse preconceito contra particularidades de culturas alienígenas. Gaguejei - com os olhos porque o mutismo me assolara de vez - que aceitaria de bom grado a iniciação, se ela me garantisse o hospital para uma eventualidade. Hoje acho que o tom de voz dela tinha um relance de malícia que não percebi na hora, quando ela me garantiu que não me arrependeria. Note bem, a melhor flor feminina que já ousara desabrochar neste mundo absurdo estava dando uma atenção além do comezinho a um sujeito que lhe era o oposto, que era a exata medida da mediocridade espiritual, intelectual e física! Sou, sob qualquer ângulo, luz ou ponto de vista um total lugar-comum e nada em mim conseguiu, em anos de laboriosas tentativas de Deus e depois de meus pais e demais parentes, amigos e mesmo minhas, desgarrar-se da nulidade neutra de um nada. Nos encontramos na frente do prédio onde ela morava, os pais estavam viajando, o irmão tinha ido a uma festa ou show ou ambos e ela me disse que a cozinha estava pronta para nós, só para nós. pensei que valeria lavar pratos, limpar piso, jogar lixo na lixeira, ser internado com desconhecida intoxicação, tudo, apenas para estar vendo-a sem outros olhos dividindo os espaços e tempos daquela passarinha. Sim, porque apesar de toda aquela beleza ou até por isso - pois deus sabe o que faz quando escreve em linhas tortas e não poria uma maior quantidade de Ida no mundo impunemente - ela era pequena, nem 1,60m, mas era proporcionada, compacta, como um pequeno quadro de Monet, muitas vezes melhor que essas grandes telas de grandes artistas que se vêem por aí...Toda beleza do átomo. Idatomo. Subimos. Nada de impressionante ou de memorável além da própria Ida, vestida com simplicidade: uma saia, uma camisa, uma sandália. Na cozinha, serviu-nos saquê explicando a origem da bebida de arroz e sobrevestiu-se com um avental comum, maior que ela, um nuvem que ao invés de tapar o sol refletia seu fulgor e ouro. Ela já havia cortado o peixe, a carne limpa e crua disposta em tábuas de madeira, o potinho cheio de shoyu. Antes de misturar a raiz forte ao molho, me fez prová-la a frio, pura, queimei a língua e a boca, ela ria e me serviu mais saquê, lavando as mucosas do gosto de fogo. Ria e me acompanhava no saquê. Me ensinou o modo de usar o hashi e apenas a sua benevolência me impediu o suicídio pelo completo desastre que fui então. Ela riu, bebeu saquê e desistiu da aula. Com destreza e simplicidade, fez dos palitos tenaz irresistível e pôs-me na boca um pedaço de peixe vermelho, dizendo o que era, mas a mente se me obliterou estes detalhes. Eu recordo a boca entreaberta de Ida imitando involuntariamente a minha própria boca se abrindo para receber a iguaria. Outro saquê. Dado momento a sua boca entreabriu em harmonia com a minha e provei de sua língua crua com molho de sonho e ela me despiu de todo preconceito com o hashi, exímia manipuladora de pauzinhos. E, aproveitando mesmo de sua estatura, me serviu sua boca, fez-me seu hashi único, seus lábios eram tenazes que me prendiam e me sugavam e me faziam sentir a felicidade inopinada de ser marisco. E me fez hashi por diversos pratos e me fartei de comer crua a carne que Ida me serviu. Gozei a delícia da culinária japonesa com Ida, mas ela não me serviu mais nada àquela noite ou em noites futuras e desde então, vivo treinando em restaurantes por todos os cantos, buscando aprender e ser digno de gozar novamente, de Ida, a culinária exótica que só ela pode servir. |
|
Protegido
de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto
acima sem a expressa autorização do autor
|