EUCARISTIA
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Renato
Bittencourt Gomes
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"E
tomando o pão, deu graças, partiu e deu para eles"
Lucas (22, 19) Desde pequenos aprendemos que é feio falar de boca cheia e, com o exemplo dos mais velhos, nos adestramos na arte das entradas e saídas: os alimentos que pomos pra dentro, as palavras que pomos pra fora. Os mais ciosos dos mandamentos, sabedores de que o corpo nos é confiado para que resguardemos a sua pureza de tabernáculo, cuidam para que marchas e contramarchas não sejam fonte de contaminação. Que nem a comida e nem o coração nos tragam a impureza! Esta é a lei. E é da lei que quero falar, enquanto ingerimos o pão que alimenta e anima, o vinho que salva e dá coragem. Vamos conversar aqui, sobre a toalha, entre pratos e talheres, copos e guardanapos, porque comer é um dos atos mais metalingüísticos de que a humanidade tem notícia. Se estamos numa mesa amiga como esta nossa, é preciso fazer festa e alegrar-se: é nessas ocasiões que o ato animal e instintivo de adquirir nutrientes torna-se humano, demasiadamente humano, e merece o nome litúrgico de celebração. Quando nos sentimos em casa, comemos elogiando a comida, ressaltando detalhes dos ingredientes, exibindo conhecimentos de receita e de execução. Com efeito, o pasto é de central importância, do que bem sabem os cristãos. Não é por outra razão que há dois mil anos eles repetem os seus mistérios em uma ceia diária na qual seu deus se faz alimento. E é mesmo dele o convite que ainda ecoa: tomai e comei. Claro que nem tudo é festa, evidente que é preciso enfrentar muito feijão com farinha no dia-a-dia, muito miojo, muito pastel de botequim. Nenhum de nós, agora assentados pachorrentamente, desconhecemos as refeições ligeiras, a apressada ingestão de nutrientes tão-somente por dever de ofício, já que o espetáculo não pode parar. Mas devagar com o andor, que o santo é de barro! A vida também é sesta e seresta. Eu vou dizer: é um contentamento estar aqui, entre os meus, numa das boas casas do ramo, comendo e conversando, sabendo que depois vem a sobremesa e o café, o charuto e mais conversa - porque assunto nunca falta e, entre amigos, silêncios não ofendem. Em verdade, entre amigos fraternos, os silêncios fazem o contraponto, compõem este mistérios maior, esta curiosa forma, amálgama de amor, compreensão, cuidado e ciúme brando a que chamamos de amizade. Esta é a lama comum de que somos feitos, esta é a nossa comunhão. Por isso nos vemos tão aflitos quando o mundo, grande e cruel, nos priva de identidades, nos afasta de uns braços nos quais sentimos conforto e segurança. Quem suportará a falta de aconchego por muito tempo? Quem for assim, que atire a primeira pedra. Antes que digam qualquer coisa, antes que me acusem, já dou parte de mim, já digo que, por um pouco de carinho, por uma voz mansa me dizendo palavras de leite e mel, sou capaz de viajar por dentro de horas e quilômetros, sou capaz de amanhecer na estrada, vencer distâncias. Queimo minhas pestanas sobre o trabalho melindroso que me fornece o necessário para seguir vivendo e também me dá um lugar, ainda que pequeno e lateral, na sociedade do homens. Mas depois, quando a noite já desceu sobre esta pobre terra, pátria de desterro, depois eu quero colher, com minhas mãos magras e saudosas, o sorriso que a bem-amada guardou para mim. Então eu anuncio, para que fique logo esclarecido: toda mesa é altar, em qualquer delas podemos oferecer o sacrifício, se estamos munidos de fé e sinceridade. Digo mais, no entanto: a toalha de linho branco pode muito bem ser substituída por um lençol cor-de-rosa, desde que o altar em questão seja uma cama larga. Se assim está disposto o templo, é preciso esquecer tudo o mais, menos o ensinamento dos antigos: curta é a vida. Isto é coisa que à custa de mim mesmo aprendi, mas não me pesa dar o testemunho de que dessas horas quietas retiramos o conhecimento e a força que brilha em nossos olhos. Algumas vezes, esse conhecimento e força são carne e sangue da palavra alegria. Sei contudo que aos ouvidos recatados soará sacrílega esta proximidade entre mesa e cama, mas não posso me furtar á constatação de que comer são as duas melhores coisas da vida. Esta é a lei. |
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