Tema 033 - COMIDA
BIOGRAFIA
SANTA CEIA
Luís Valise

..."que a Cuca vem pegar,..."

Olhando pra cima, vendo o rosto da mãe, imaginava que Cuca seria aquela que viria me pegar, e certamente me comer. Vai ver que era aquele bicho horrível de plástico verde pendurado sobre o meu berço, grandes asas transparentes presas a um longo corpo terminado em cauda pontiaguda, pintado com anéis pretos e amarelos, e grandes olhos sobre uma boca vermelha prestes a sugar meus sonhos recém-nascidos. Fechava os olhos tentando apagar a tenebrosa imagem, e apertava minha bochecha, alvo de incontáveis beliscões (que gracinha!, que fofinho!, xuxuquinha da nhenhéca! (que diabos de língua seria aquela? Esperanto? Aramaico? Javanês? Parem de fazer essas caras imbecis e falem algo que eu entenda!)) de encontro ao pesado seio redondo da mãe, buscando no sono escapar do pesadelo verde que já sobrevoava minhas idéias.

- Você tem que comer pra crescer e ficar forte!

Sempre a mesma ladainha. A vó nunca perguntava se eu queria, simplesmente punha o prato à minha frente, e lá vinha a história de crescer inteligente, estudar pra não ser um burro de carga feito o avô (ainda bem que o pobre morreu sem ter que ouvir isso) e que só comendo bem ficamos inteligentes, você não vê os americanos, altos, louros, saudáveis, nos filmes da televisão sempre tomando grandes copos de leite, ou quando caubóis esquentando a gororoba numa fogueirinha calorosa antes do ataque dos índios? Pois sim!, do que eu lembrava mesmo era das americanas louras e saudáveis, grandes peitos cor-de-rosa, no banheiro a mão cheia de amor...

A figura da Esfinge surgia, inesperada: - Decifra-me ou te devoro! Na mesa de bar, armado de copo e cigarro, passava quantas noites tentando achar sentido nos desencontros e descaminhos que surgiam à minha frente. Afinal, onde iria dar aquilo tudo? Quem espera sempre alcança, Deus ajuda a quem cedo madruga, ama ao próximo como a ti mesmo, plantar uma árvore, ter um filho, escrever um livro. Onde a realização do Homem? Realista, pensava nas amarguras que fizera brotar, nos filhos que, crescidos, se tornaram estranhos, no livro que minha mediocridade jamais escreveria. Entre copos e dúvidas a vida seguia mastigando os meus dias, inexorável.

No leito, imóvel. Em volta, a família esperava com ansiedade o desenlace. Já dera muito trabalho. Não falava, não abria os olhos, não mexia um músculo. Mas pensava. Não conseguia crer em nada à frente que não as larvas em repasto. Assim como os grandes dinossauros, eu também estava em extinção. Imaginei-me isso mesmo, um paquiderme que deitava, exausto. Desisti, pedindo desculpas a Lorca: - verme, que te quero verme...

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