O
PESO DO AMOR
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Fred
Leal
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Ana pesava "setenta
e poucos" quilos. Apesar de ocasionais acessos de vergonha (que apareciam
a cada novo verão), suas formas rechonchudas nunca lhe impediram de nada.
Tinha um bom emprego, um namorado e uma cabeça tão maravilhosa que evitava
que a palavra "gordinha" tornasse sua definição comum.
O grande feliz da história era seu namorado, Vander. Além de ter ao seu lado uma mulher inteligente, divertida e companheira, era tarado pelas gordinhas. Sim, Vander era um grande apreciador de formas voluptuosas, e Ana encarnava seu desejo. Ana e Vander conheceram-se na faculdade. Ambos cursavam letras, e o fato dele ser um dos únicos homens no curso, e ela, uma das únicas mulheres na turma que pesava mais de sessenta, os aproximou mais. E ainda no primeiro período já estavam namorando. Quase quatro anos se passaram, entre aulas, festas e muitas idas aos restaurantes da pequena cidade que abrigava a universidade. Afinal Vander conhecia seus desejos e fazia de tudo para manter seu namoro e fetiche em forma. Várias foram as vezes em que Vander se satisfazia apenas em ver Ana comendo, e sequer deixava a menina pegar na carteira quando a conta chegava. Então o pai de Ana faleceu. A morte do senhor foi lenta, anunciada há alguns anos por uma doença irreversível. O momento já era esperado por todos, e ainda assim, Ana teve um colapso nervoso. A menina apenas chorava, desde a remoção do corpo do hospital ao funeral e enterro do senhor. Os dias se passavam e Ana não dava sinais de melhora. Continuava sensibilizada, e crises de choro eram freqüentes e cada vez mais intensas. Vander, como namorado preocupado que era, sugeriu que a menina procurasse um terapeuta. A família de Ana abraçou a idéia, e então, na quarta-feira seguinte, lá estava ela, na sala de espera de um pequeno consultório na avenida principal. Algumas sessões se passaram e a melhora de Ana era surpreendente. A menina voltara a sorrir, os rompantes de lágrimas haviam desaparecido... Tudo parecia ir bem, até que ela anunciou: "vou trancar a faculdade e passar o resto do semestre em um spa." Sua mãe protestou, afinal, era o ano de formatura da menina. A irmã tentou lhe convencer de pelo menos terminar o período, mas nada adiantava. A preocupação de Vander, entretanto, era outra. - Spa? Como você vai pra um spa? Spa não é onde se faz dieta, e tal? Pra que você quer emagrecer? Você é linda! E Ana retrucava: - Não vou para um spa emagrecer. Vou repensar minha vida, meus caminhos, minhas prioridades. E aproveitar pra relaxar, reeducar minha alimentação... - Mas a sua alimentação é boa, você come muito bem! - Não, amor -dizia ela, condescendente - eu como muito. Ponto. Várias discussões aconteceram, e Ana começava a perder a paciência. Ao notar seu nervosismo, Vander resolveu deixar seu egoísmo de lado e esperar para ver. - Tudo bem. Mas me prometa que você vai voltar pra mim. - Claro que vou, amor. Você é a única coisa que eu não preciso repensar nessa vida. E Ana foi para um spa. Lá ficou quase três meses, os últimos meses do semestre. Vander telefonava para a namorada, todo dia, ansioso. Quando perguntava sobre a alimentação, se ela estava comendo direito, Ana respondia com palavras vagas e rapidamente mudava de assunto. Quando Ana voltou, o choque foi geral. A menina tinha perdido mais de dez quilos. Ainda conservava suas curvas, mas definitivamente era outra mulher. A família a parabenizava, enquanto Vander, preocupado, insistia que aquilo não estava lhe fazendo bem. Ele a levava a restaurantes, lanchonetes, docerias... Chegou a sugerir um "tour gastronômico" pelo sul do país. Ana insistia que era bobeira, que ela estava ótima e que apenas comia coisas mais saudáveis agora. Não foi isso que os meses seguintes disseram. Ana comia mal, mas comia menos, cada vez menos. Almoços começaram a ser substituídos por copos de refrigerante "light", o jantar tinha sido trocado por barras de cereais, seu desjejum se resumia a pedaços de queijo e café. Ana emagrecia de forma irregular e exponencial. Ana agora pesava menos de cinqüenta quilos. Suas curvas foram substituídas por varizes e flacidez. Vander também era outra pessoa. Engordou, de tanto que saíam para comer, e seu rosto, outrora sorridente e anêmico, dava lugar à uma imagem corada e perturbada. Seus olhos vagavam pelas bochechas gordas e vermelhas, e seu sorriso malicioso agora transmitia uma energia quase psicótica. Continuavam namorando, continuavam saindo e comendo. Vander se empanturrava, na esperança de trazer Ana de volta à sua antiga realidade, enquanto Ana se limitava à sopas e saladas. E isso também durou pouco. Ana comia apenas para agradar o namorado, e quando o segundo prato chegava, pedia licença para retocar a maquiagem e vomitava a entrada. Num sábado, após as provas finais do rapaz, foram a uma churrascaria. Vander não recusava nenhuma das carnes oferecidas pelo garçom, enquanto Ana, no banheiro, inundava a pia com sopa de legumes regurgitada. E ele nem desconfiava. Ana continuava emagrecendo. Já havia voltado à terapia e tomava reguladores de apetite, devidamente vomitados com o café da manhã. Vander, por sua vez, não parava de engordar, e o brilho neurótico de seus olhos era cada vez mais intenso. A relação entre o casal era viciosa e de devoção. Ana queria agradar o namorado, que queria engordar Ana. E não conseguiam se separar, esse elo era mais forte que qualquer terapia. A psicóloga de Ana, uma senhora de cinqüenta anos, resolveu que Vander deveria conversar com ela. A doutora acreditava que seu comportamento obsessivo refletia na desordem alimentar da menina. E Vander cedeu. Marcou a consulta. E voltou na semana seguinte, e na seguinte, e na seguinte. Dez anos se passaram. Ana largou a faculdade para seguir no curso de nutrição, e voltou ao seu peso ideal. Mas não era feliz. Nunca mais foi. Vander largou Ana e se casou com a terapeuta, agora aposentada. Mudaram-se para uma fazendinha perto de Gramado, onde lhe sobrava tempo para explorar seu novo fetiche. |
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