CULTIVANDO
A GULA
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Beto
Muniz
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Para
falar sobre comida eu preciso antes esclarecer que minha família
é grande. E antes que me perguntem o que isso tem a ver com comida,
eu já esclareço que a forma como vou abordar o assunto envolve
minha infância, quando o almoço em família reunia
oito pessoas em torno da mesa. Isso aos domingos, que durante a semana
era difícil reunir todos numa refeição.
Minha mãe era professora e quem cuidava dos cinco irmãos era eu ou minha irmã mais velha. Nós, os irmãos, íamos para a escola alternadamente: dois meninos na parte da manhã e as três meninas no período da tarde. O caçula, que não estudava, ficava comigo até minha mãe chegar da escola, duas horas após minha irmã sair. Ou seja, eu era babá do meu irmão por duas horas todos os dias da semana. Mas não vamos nos prender aos meus dotes, vamos falar sobre o almoço de domingo. Geralmente matava-se um frango e meu pai comprava uma garrafinha de tubaína para cada integrante da família. Tenho marcada na memória a lembrança de meu pai furando, uma a uma, as tampinhas de metal com um prego. O refrigerante era degustado lentamente por um canudinho inserido através do buraco na tampa. Era invejado quem sorvia por último, a última gota. Outra lembrança é da minha mãe escolhendo um frango no terreiro e depois repassando a mim ou ao meu irmão do meio, a tarefa de capturar e degolar o infeliz. A degola obedecia às doutrinas da fé praticada por meus pais. Até os dias de hoje, por questões religiosas, meus pais preservam o costume de verter na terra o sangue do galináceo ou de qualquer outro animal que vai servir de alimento. Eles acreditam que vamos prestar contas a Deus por todo sangue derramado, e por isso a terra deve beber o sangue para devolvê-lo no dia do juízo final. Fé não se discute. Pode parecer crueldade com os bichinhos, mas não guardo remorso por ter capturado e degolado centenas de frangos, tenho sim saudades das panelas de ferro fumegantes dispostas na chapa do fogão à lenha. A panela de arroz com mandioca, a de feijão com pedaços de toucinho, a de frango no molho de tomate e a de macarrão. Tudo cozido na banha de porco (estou babando). Minha mãe mantinha uma tradição na hora de servir o almoço: ela servia meu pai, servia o filho caçula que não podia se aproximar do fogão, depois permitia que os cinco filhos maiores se esbaldassem e só então ela fazia seu prato. Sempre assim. Não havia pressa, cada qual tinha seu pedaço preferido reservado na panela e cada qual era obrigado a comer tudo que colocasse no prato. Ai de quem deixasse sobra de comida! Eu sempre comia uma coxa, uma asa e uma metade da moela. Às vezes, era raro, eu repetia o prato e comia uma coxinha de asa também. O fígado de frango ninguém gostava e geralmente sobrava para o último que repetisse o prato. Conversa fiada ou discussão a mesa? Nem pensar. Meu pai considerava agravo falar na hora de refeição e todos nós comíamos em silêncio. Era em silêncio que cinco pares de olhos corriam a mesa, sondando quem terminava por último a garrafinha de tubaína. Os almoços transcorreram iguais por domingos eternos, até que numa manhã qualquer de minha adolescência, após derramar mais um tanto de sangue na terra, fiquei observando mamãe preparar a refeição dominical. Sem ter muito que fazer eu e meu irmão começamos um jogo de adivinhações: em quantas partes ela dividia o frango? No final nós dois erramos. Um frangão daquele, criado no terreiro, foi fracionado em vinte e duas partes. "Vinte e duas partes fora às tripas", fez questão de salientar meu irmão! Esse número começou a apoquentar nossa mente para em seguida plantar o pecado em nós. Sim! Alguém estava sendo lesado! Vinte e dois pedaços divididos por oito pessoas, deixava alguém comendo menos frango que os outros. No início apenas nós dois prestávamos atenção ao número de pedaços que cada um comia e cuidávamos para não sairmos no prejuízo. Logo minhas irmãs perceberam a guerra muda e entraram na competição por partes iguais. Não demorou muito para a movimentação apressada na hora de servir o prato virar uma disputa acirrada entre os cinco filhos. Recordo que eu me servia enquanto o meu irmão segurava a ala feminina... Quando meu pai soube o porquê dos atropelos em torno do fogão, tivemos que ouvir um sermão sobre a gula e almoçar a seco, de castigo, sem tubaína. Não adiantou muito, pois no domingo seguinte lá estávamos nós, os herdeiros, engalfinhados por um pedaço a mais de frango. Foi então que, por decisão paterna, ocorreu uma mudança no cardápio de domingo. Passamos a comer vaca atolada. Costela de vaca cozida com mandioca. Cada qual se alimentava com dois pedaços de carne com osso enquanto os frangos, de vinte e três partes (incluindo as tripas), eram vendidos na cidade para pagar a costela dominical. Nunca mais degolei frango, mas confesso que até hoje, quando todos os irmãos se reúnem para um almoço em família, meus olhos continuam se movimentando, correndo os pratos na mesa, contando os pedaços de frango que cada um come... Ou então fico de olho nos copos de refrigerante, pra ver quem termina por último. |
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