VIOLÊNCIA
NÃO
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Samuel
Silva
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Esperou o helicóptero de
reportagem de trânsito de uma rádio se afastar no céu e viu pelo retrovisor
que estava a uma distância apropriada dos carros à frente e também atrás,
sem ninguém na faixa do lado. Reduziu a velocidade enquanto posicionava
o carro para a linha central das duas faixas do viaduto e freou, como
barreira ao trânsito. Puxou o freio de mão. Suspirou. Inspirou profundamente
e veio como inspiração o Yul Brinner de Westworld e o Clint Eastwood de
Josey Walles. O olhar apertado contra a claridade. Colocou os óculos escuros,
cinco pratas no camelô. Aumentou o rádio. Simone cantava aquela "só
uma palavra me devora...". Gostava daquela música como gostara da
novelinha de tv em que a ouvira pela primeira vez. O Ateneu?
Os carros retidos por ele já buzinavam e ele ouvia os gritos, xingamentos, nenhum novo, nenhuma criatividade. Que tinha mesmo a mãe dele a ver com isso tudo? O pôs no mundo. Fiat lux. Aquele horário naquele viaduto era sempre tráfego de intenso para lento, como dizia o repórter do helicóptero no trânsito. Saiu do carro acendendo a cigarrilha que comprara. Abriu o porta-malas, melhor seria se chamado porta-pochete, de tão pequenino, veículo popular é dose! Tirou de lá a arma comprada por quinhentos paus. Já estava carregada. Podia ver o rosto nos parabrisas dos carros olhando para ele, olhando uns para os outros, olhando para a arma. Olhares de alta-rotatividade. Andou na contramão. Viu o velho enternado no carro importado. Pá. Parecia um traque de festa junina em campo aberto. Nem eco. A moça de rosto teen, cabelo vermelho. Pá. A cara vermelha, insulfilm vermelho no parabrisa traseiro. O casal logo atrás. Pá. Pá. O garotão pitboy. Pá. Lembrou do dito: não existe força depois que inventaram a pólvora. Foi Marco Polo que a trouxe da China? Engraçado, mas dias de semana não são dias-família. Não viu casais com filhos nos carros. Pá. Pá. Pá. Começou a correria, gente saindo dos carros, deixando portas abertas. Vai ser uma merda desatar o engarrafamento depois. Pá. Pá. Pá. Câmara lenta. Corridas lentas. Movimentos estroboscópicos. Só faltou luz negra. Pá. Pá. Pá. Olhou para trás, estava na sexta fila. Rubinho Barrichelo. Depois do Ayrton não dava mais para assistir às corridas, só restou o Galvão Bueno e esse é muito chato, histericamente patrioteiro, não valia o sacrifício. Preferia o Cléber Machado. Foi voltando para o carro, a fumaça da cigarrilha incomodando os olhos. "Que coisa mais idiota fumar!". Pá. Pá. Só para ficar certo, nada de gente gemendo e reclamando. Nada de gente vendo e memorizando. Voltou para o carro e jogou a arma no banco traseiro. Colou o adesivo da campanha de solidariedade aos portadores de aids no vidro traseiro. Tinha esquecido, estava há dias no banco traseiro. Ligou. Acelerou várias vezes, o motor estava meio ruim, talvez sujo. Não sabia se aquele modelo tinha carburador. Ou era gasolina batizada. Foi para casa. Limpou a arma com um lenço, vira em vários filmes. Pegou o carro, jogou a arma no rio. Voltou para casa, ligou a tv, estava passando jornal. Desligou. Pegou um livro, Dickens. Gostava dele mas ainda não havia lido sobre o Sr. Pickwick. Na semana seguinte, no bar para o chop semanal com o pessoal depois da pelada, ainda continuavam a discutir violência, corrupção, porquês. Deram a mão à palmatória para ele: estava certo, era muita impunidade, ninguém punia ninguém, não era mais bandido e mocinho. Sorriu, virou a tulipa de uma vez só. A conta era deles, foram convencidos pela sua argumentação e agora concordavam todos, um bonito consenso anti-rodriguiano. "Ainda bem que moramos em condomínio fechado com ônibus próprio", disse alguém na mesa. Modesto, explicou que convencer é usar um discurso lógico com argumentos coerentes amparados em fatos ou ao menos em fortes evidências. Outro chop e, de novo sorrindo, propôs um brinde: - À paz mundial! |
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