NA
CONTRAMÃO DO TEMPO - CORDEL
|
|
Lisa
Simons
|
|
Foi um parto difícil, quase
era mais um natimorto. Chegou ao mundo minguado, pelancudo, pré-maturo,
mal respirava e foi logo entubado. Os que chegavam o olhavam com pena,
no íntimo, pensavam: virgem como era feio o pobre diabo!
O pai não escondeu a decepção. Será que vai vingar? Não conseguiu imaginá-lo como sendo o primogênito, já programando uma nova tentativa. A mãe segurou sua mãozinha pequena, culpando-se pelo seu estado. Chorou toda à noite e o dia seguinte também, até se acostumar com a realidade: seu filhinho tão esperado era frágil, mais parecia um velhinho, de tão enrugado! Apesar dos percalços, das desinterias, da asma, das pústulas que insistiam em brotar-lhe do pescoço e no couro cabeludo, ele crescia, desafiando as perspectivas de que a vida lhe seria breve. Custou a andar, a falar mais ainda, mas quando esse dia chegou desembestou a correr e a matraquear que nem locutor de rádio, concatenando as palavras de forma atraente à audição. Enquanto os outros garotos "viajavam" imaginando-se jogador de futebol contratado, piloto de avião a jato, presidente, médico, advogado, ele só queria concluir um curso de datilografia e atravessar, a nado, um pequeno trecho do Capibaribe. No amor já nasceu desacreditado, na adolescência então foi ignorado. Nos bailes, só dançava com moça bonita quando sua irmã, condoída de seu isolamento, dava com ele uma breve voltinha no salão. Na escola, na rua, até na igreja onde mulher sobrava aos bocados, ele não conseguia segurar uma mão que não fosse de velha ou de criança querendo uns trocados. Aos vinte anos, a vida dele mudou, crescera um pouco mais que a média, as espinhas sumiram, o cabelo arrepiado baixou. Um pouco de peso, utilizado com critério, delineou seus braços e tórax. Encarnou a versão masculina da Cinderela. A verbalização das idéias, sempre de forma precisa, a facilidade de comunicação, a simpatia que transmitia, transformou-o em liderança do bairro e na escola de engenharia, até abraçar a política, da qual nunca se afastou. Foi vereador, tantas vezes deputado, terminando prefeito de sua cidade natal. Poderoso, casou-se bem e com moça bela, de boa família, nome ilustre da comunidade. Logo, logo, era nome de rua, de bairro e até de faculdade. Morreu aos cinqüenta anos, de enfarto do miocárdio, lindo, rosado (resultado de maquilagem), vestiram-lhe um Armani bem cortado e uma gravata Pierre Cardin. No velório todos comentavam: ali nunca fora sepultado defunto mais bem apessoado. A cerimônia foi concorrida e o luto dobrado (dois dias de feriado). Deixou viúva inconsolável e uma amante incontrolável, que lhe cobriu o caixão de madeira nobre com a bandeira do Náutico, time do seu agrado, que se sagrara campeão, depois de onze anos de jejum, ironicamente, no dia do enterro do finado! |
|
Protegido
de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto
acima sem a expressa autorização do autor
|