Tema 032 - NA CONTRAMÃO
BIOGRAFIA
MOLEQUE DO CONTRA
Beto Muniz

"Titia que morava na Argentina voltou,
riu de mim porque eu não entendi.
Me trouxe uma caixa de perfume, ehê,
daquele que não tem mais por aqui.

Eu disse não, não, não, não;
não brinco mais carnaval.
Cansei de desmaiar no salão...
Muito obrigado, eu já andei perfumado
e não quero mais andar na contramão".

Era abusado o moleque. Em pleno regime militar divertia uma parcela oprimida da sociedade com seu humor debochado. Quando o país estava sob o domínio do medo o Raulzito escrachava o sistema e, entre outras coisas, teve a ousadia de afirmar que não queria pagar nada, queria era alugar o Brasil. Usava sua voz esganiçada para cantar frases bobas, quase sem sentido, como: "Você é forte mas eu sou muito mais lindo...". Um esculacho! Na contramão dos movimentos guerrilheiros - e também dos intelectuais que discursavam teorias, ele se apresentava como escritor que tinha perdido a pena. Diante da tirania exaltava as vantagens de uma sociedade alternativa. A música que toca no rádio me faz lembrar que é aniversário de morte de Raulzito. Morreu em São Paulo, dia 21 de Agosto de 1989.

Estou atrasado com meu texto sobre "contramão" e a morte do Raul oferece uma idéia de homenagem. Talvez escrever uma crônica sobre ele. Mas quem sou eu? É muita responsabilidade! Apesar que eu teria muito material para usar se quisesse mesmo escrever sobre Raul Seixas. Desisto. Vai pintar assunto menos comprometedor até o final da semana.

Aqui da sacada presencio, pela enésima vez, uma cena tola, que não requer grande responsabilidade narrar. Moro no quinto andar e da sacada vejo a estação de trem. Ela foi construída no início do século passado, acho, e faz parte da malha ferroviária que ligava Santos a Jundiaí. Hoje vai de Francisco Morato até Paranapiacaba. Um túnel para pedestres liga uma plataforma de embarque à outra, e minha visão das entradas do túnel é privilegiada. Vejo tudo! Vejo inclusive o sujeito correndo desesperado quando o trem aponta lá na curva. Só quando o trem se aproximava da plataforma foi que ele percebeu o engano. O comboio trafega na mão de direção inglesa, ao contrario da mão de direção no Brasil, e vai parar na plataforma oposta. O rapaz sai correndo, entra pela passagem subterrânea e aponta resfolegante na plataforma correta. Sei que já vi essa cena inúmeras vezes e até já fiquei imaginando que tipo de pessoa é essa que não lê as placas indicativas. A estação é toda sinalizada e o usuário só comete esse tipo de engano se não estiver atento às informações... Bem, confesso que também cometi esse engano e, desde então, passei a observar os distraídos que andam com a cabeça baixa e depois são obrigados a correr.

De tanto observar já consigo prever o incauto que ocupou o lado errado da estação. Geralmente ele vai para o centro da cidade, raramente para os bairros, então basta ficar de olho na plataforma do lado de cá dos trilhos. A vítima quase nunca senta nos bancos sujos de estação, é um estreante de ferrovia paulista, e fica andando de um lado para o outro lentamente. Vai de um extremo ao outro da plataforma até que vê surgir um trem, se der sorte a locomotiva vai para o bairro e estaciona na plataforma em que ele está. O moço tem senso de direção, compreende o engano, mas não vai imediatamente para a plataforma correta! Espera as portas se abrirem, os passageiros descerem e então, calmamente, se dirige para a passagem subterrânea disfarçando seu erro, pois não quer que todos percebam que ele é um passageiro casual.

Uma vez perguntei, não me lembro para quem, por que não invertem a mão de direção na malha ferroviária? Parece tão fácil deixar tudo igual. O metrô paulista trafega na direção correta para nós, carros e ônibus também, por que não os trens? A resposta recebida ´foi que nas curvas, o trilho de dentro fica mais abaixo em relação ao trilho de fora para o trem não tombar e se mudassem as mãos de direção, o trem tombaria nas curvas. Não sou engenheiro, mas não precisei pensar muito para acreditar que seja realmente por isso, porém, ainda pretendo conferir essa história. Enquanto não confiro se a resposta está correta mais um comboio aponta na curva, trafegando na contramão do costume brasileiro, e mais um usuário dispara carreira rumo ao túnel e surge resfolegante lá do outro lado. Vai esbaforido! Vai para o centro da cidade. Eu fico aqui, na sacada, rindo do sujeito. Mas na verdade eu rio satisfeito por saber que, assim como eu, muitos outros já foram pegos na contramão do trem. Um engano bobo que bem poderia virar música de contestação debochada nas mãos do Raulzito, se vivo ainda fosse! Ah, vivo ele era. Era sim... um moleque maravilhoso.

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