PARAISÓPOLIS
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Maurício
Cintrão
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A idéia da matéria era denunciar
os esquadrões da morte existentes dentro da favela de Paraisópolis. Encravada
em uma das zonas mais ricas da cidade, o Morumbi, a favela é oriunda da
ocupação irregular de um loteamento que não deu certo. Curiosamente, fica
entre dois cemitérios de mortos ricos. Sua gente sobrevive pobre, mas
digna, há muito anos.
Repórter com pretensões a Prêmio Esso, aceitei o desafio de morar na favela por uma semana, dividindo um barraco com o repórter fotográfico Célio Jr., da Agência Estado. Queria imitar meus ídolos, os repórteres da revista Realidade, e tirar daquela experiência uma reportagem inesquecível. A pauta era ambiciosa: tínhamos que nos aproximar dos "matadores" e conhecer como funcionava o esquema de "segurança" estabelecido na favela contra os marginais que a infestavam. Vizinhos dos prédios suntuosos ligavam para a redação do Jornal da Tarde para reclamar dos tiroteios que freqüentemente assustavam a região. Os tiros só podiam vir da favela, argumentavam. Os defensores existiram, de fato. Mas os bandidos fugiram depois das investidas do grupo e o esquema próprio de segurança perdeu o sentido. Os justiceiros voltaram a ser comerciantes ou simples habitantes do local. Chegamos, inclusive, a conversar com um jovem candidato a gângster. Marcelo, o "Martelo", que se auto-proclamava matador. Afirmava ser o autor de um dos crimes mais conhecidos no local, que terminou com a imolação da vítima em uma das ruelas da favela. Com o tempo, fomos percebendo que a grande matéria não girava em torno de crimes, mas das pessoas simples de Paraisópolis. A favela era uma verdadeira cidade com líderes, grupos organizados, igrejas, escolas e vocações. Era uma terra de crianças que equilibravam pião na mão, empurravam rodinha na ladeira e sabiam cantigas de roda já esquecidas. Havia personagens fantásticas. O Zé Rolinha, por exemplo, líder comunitário e dono de uma mercearia na favela. Tinha o talento político de trafegar com desenvoltura entre os grupos rivais. Era mestre em convencer os candidatos a vagas de vereador ou deputado a doarem uniformes completos, bolas e redes para os times que dividiam os quatro campos de futebol da favela. Os votos nunca iam para eles, mas os times sempre estavam bem uniformizados. Estevão era outra figura curiosa. Operário de uma empresa especializada em construção pré-moldada, colecionava restos de vidro grosso das grandes obras para montar seu barraco. Sua cama tinha dossel com cortinado e o teto de sua casa era pintada com elementos expressionistas. Uma jóia para encantar qualquer arquiteto inteligente. As fotos, o Célio deve ter guardadas, lá com ele. E como em todo o lugar tem um sósia, a favela não poderia ser diferente. Não lembro seu nome, mas seu apelido era Sarney. Não era literato, mas era sósia do então presidente. Nos aproximamos dele por conta dessa semelhança, mas foi sua história que nos encantou. Certa noite, entre rabos de galo e partidas de dominó, falou que seguia a sina de muitos dos seus conterrâneos. Mudara para São Paulo para ganhar um dinheirinho e depois voltar. - Era prá ficar um ou dois anos, mas já estou aqui há 14 e acho que não volto nunca mais. Nunca mais fui o mesmo depois daquela semana. A matéria não foi publicada e, logo depois, saí do jornal. Ficou a sensação de que aprendi com aquele povo simples o que não aprenderia em nenhuma faculdade por dinheiro nenhum do mundo. Minha melhor reportagem foi uma lição de vida. |
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