SECOS
E MOLHADOS
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Luís
Valise
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- Abigail, fecha a porta! Era terrível partir assim, aquela choradeira como se eu fosse para a guerra, quando no máximo eu iria para os lados de Corumbá vendendo laticínios. Mas toda vez era aquele auê, aqueles olhos vermelhos e inchados, aquele interminável abraço de náufrago. Dona Myrtes, bondosa vizinha, vinha em minha ajuda e com cuidado desvencilhava os braços de Abigail do meu pescoço e levava-a para dentro. Antes de virar a esquina eu dava uma última olhada para trás e da janela Abigail me jogava um beijo, aos prantos. Eu sempre guiava numa enfiada só. Chegava em Corumbá morto de cansaço, e também morto de saudades da Aurora, mulher do seo Mathias, que tinha um atacado de secos e molhados. Eu molhava o meu biscoito na Aurora, uma morena de olhos puxados, cabelos lisos, corpo macio. Do hotel eu ligava pra Aurora e marcava a visita. No dia seguinte eu aparecia no horário combinado. Seo Mathias, um ex-garimpeiro rústico, com dente de ouro e barba por fazer, me recebia com cordialidade, jogava meia-hora de conversa fora, invariavelmente sobre futebol, e chamava a esposa: - Aurora, vai com ele levantar o estoque. Íamos para os fundos do grande armazém fracamente iluminado, sentindo o cheiro forte dos mantimentos empilhados. Aurora levantava o estoque, a saia e a minha vara. Fazíamos o amor entre gemidos abafados, às vezes em pé, noutras apoiados no que desse (caixas de bacalhau da Noruega, pilhas de parmezão Faixa-Azul). Certa vez perdemos o equilíbrio e caímos sobre um monte de charque. Grãos de sal ficaram grudados nas partes mas continuamos assim mesmo. Gozamos aos soluços, com lágrimas nos olhos, fingindo que era paixão. Depois de algum tempo voltávamos à loja meio desgrenhados, bocas vermelhas de chupões, cheiro acre dos alimentos entranhado nas roupas, os olhos baixos e baços. O marido parecia olhar pra outro lado, conferia a relação dos produtos a serem repostos e depois de molhar a ponta do lápis na língua fazia um garrancho ilegível ao pé da página. Eu achava que ele não desconfiava de nada. Me despedia, seguia completando o itinerário, e dali a uma semana passava de novo, na volta, para mais um dedo de prosa e algumas encoxadas aflitas na Aurora. Parado para almoço numa churrascaria de beira de estrada, sentei-me junto a outro viajante, velho conhecido desses interiores. Conversa vai, conversa vem, ele solta a bomba: - Cuidado com o Mathias. Me fiz de desentendido, avermelhei, gaguejei, o outro só olhando. De novo ele foi direto: - Ele sabe de você com a Aurora. Todo mundo sabe. Não sei como pude dirigir até em casa. Minha cabeça zunia pensando no armazém, com seu escuro, seu cheiro, seu perigo. Afastei o abraço da Abigail, sentia até um pouco de febre. Foram várias noites sem dormir, sonhos em que o garimpeiro me perseguia com uma faca por entre pilhas de queijos e salames. As semanas se passaram rápidas como nunca. Chegava a hora de repetir o roteiro, visitar de novo Corumbá. Aurora, aquela vaca oferecida! Mal comecei a fazer a mala e Abigail sentou-se na cama, cara triste. Tive vontade de dar-lhe uma porrada quando me pediu pra ir junto. Pensei melhor e tive vontade de dar-lhe um beijo. Era isso! Se ela fosse comigo estaria afastada a hipótese de que eu tivesse algo com a Aurora. Pelo menos seo Mathias ficaria na dúvida. Abigail ficou em êxtase quando mandei-a fazer a mala. Como? Quando? Onde? Por quê? Foram tantas as perguntas que aproveitei pra não responder nenhuma: - Faz a mala, porra! Fui mostrando a paisagem, quedas dágua, ipês em flor, montanhas ao longe. No hotel o gerente fez cara de espanto quando preenchi na ficha: esposa. Marquei a visita deixando Aurora muda: - Vou levar Abigail pra vocês conhecerem. Dia seguinte, à hora marcada, estacionei o carro defronte ao estabelecimento e fiz questão de abrir a porta para Abigail : - Venha, querida. Ao entrarmos apenas cumprimentei uma Aurora com cara de esfinge: - Como tem passado, minha senhora? Ao que ela sumiu pra dentro do armazém, pisando forte. Com seo Mathias fui mais caloroso: - Grande amigo, prazer em reve-lo! Tudo bem? Esta é minha esposa, Abigail, que já te conhece de nome e queria muito te conhecer pessoalmente. Abigail estendeu a mão e disse: - Encantada. Na hora nem notei que ele estava de barba feita. Como de hábito fuxicamos sobre Palmeiras, Corinthians, e outras besteiras. Em seguida abri minha pasta e peguei o talão de pedidos. Ele então chamou em voz alta: - AURORA! Ela chegou com cara amarrada. Aurora, fique aqui fazendo companhia pro seo Nestor enquanto eu levanto o estoque e mostro tudo para dona Abigail. E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa pegou no braço roliço da Abigail e sumiu no escuro do grande galpão. Eu e Aurora, sem assunto, fingíamos ler velhos jornais e revistas. Depois de uns intermináveis quarenta minutos os dois voltaram. Seo Mathias me olhando direto nos olhos, Abigail procurando qualquer cisco no bico dos sapatos, rosto afogueado, lábios muito vermelhos. Em seguida o puto molhou a ponta do lápis na língua, pegou o talão e caprichou: MATHIAS. Tudo maiúsculo, legível como nunca. A volta foi em silêncio, não sei se Abigail cochilava ou fingia. Pedi ao chefe que mudasse minha zona. Agora visito o Paraná. A região é mais fria, as pessoas mais caladas. Se bem que em Ponta Grossa tem um alemão fortão que gosta muito de prosear. Às vezes eu acho que a mulher dele, uma loira de pele clara e sorriso bem branquinho, espicha o olho azul pro meu lado. Quem sabe no futuro eu traga Abigail pra conhecer o sul... |
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