DISFARCE
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Ivan
de Almeida
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Botar o dinheiro na meia.
Esta é manjada. A meia é o primeiro lugar onde se procura dinheiro. Há vinte anos, aventuras mochileiras, costumava enfiar o dinheiro no fundo do saco-de-dormir, e isso sempre deu certo, não sei se pela época menos áspera ou pela qualidade do esconderijo. Deixava o dinheiro lá e ia me divertir, nadar, explorar. Mas, e se ganhasse na loto, quero dizer, na sena ou na mega-sena, sei lá, pois sequer sou jogador habitual, que entende as diferenças entre elas em minúcias? Se ganhasse uma bolada, milhões? Morro de medo disso. Uma vez joguei, prêmio acumulado por várias semanas, contaminado pelo frenesi dos conhecidos, e torci muito para não ter o azar de ganhar, perdendo, de súbito, o controle que por mera imaginação acredito ter sobre a minha vida. Não ganhei, felizmente. Mas, uma ou outra semana, jogo, e já tenho idéia do que fazer, ganhando. Nessas coisas, o importante é não ser surpreendido. Faço nada. Fico na moita. Disfarço.Vou trabalhar no dia seguinte como se nada tivesse acontecido. Preferiria os trabalhos mais chatos a fim de distrair a cabeça. Ganharia tempo, para, aos poucos, ir trocando o carro, a casa, casca, a pele, como uma cobra. Ir me acostumando à nova vida. Imagino os primeiros dias, apavorado, temendo me vigiarem, me seqüestrarem, temendo que todos saibam do terrível acontecimento, que o fato se torne público. Se soubessem, perderia todos os amigos. Os parentes tornar-se-iam dependentes, eternamente insatisfeitos com as dádivas que distribuísse, mas sempre polidos e agradáveis, manifestando apenas por meias palavras ih, esse era o tema de uma outra semana!- suas ambições. Sequer podemos dizer: "Eu não quero essa terrível sina!". O futuro estaria materialmente garantido, e, com juízo, garantido até a terceira geração. Levando essa vidinha que levo, regrada, talvez até a quinta. Naturalmente os hábitos mudariam, aumentariam os luxos, mas dinheiro chama dinheiro também. O problema está na hora da transição, durante a qual ainda não saberemos viver do novo jeito, e já não é possível a forma antiga. Porque o que todos querem, no fundo, é a própria vida melhorada, cômoda, folgada, preguiçosa, e não virar um Michel Jackson ou uma Xuxa, encastelados em torres de riqueza irreal. Dai só haver uma saída: fingir. Se o destino fizer essa graçola, cobrando caro aquele jogo irresponsável que você fez quando foi pagar o gás (pois nesses tempos loucos o gás se paga nas lotéricas), disfarce. Finja, até mesmo para você, nada ter acontecido, pois grande é o risco de perder o que há de importante de fato, e virar fantoche de uma riqueza incompreensível. Bote tudo no fundo do saco-de-dormir. Dá certo, pode crer. |
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