BOQUITA
DE CEREZA
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Míriam
Salles
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Eu
costumava a achar que a vida podia se resumir, simplesmente, a mim
e minha flauta. Doce é claro. Sempre fui doce.
Lembro-me de uma vez em que fui a Rio Claro com a turma da Geologia da USP. Eu era a mascote do grupo de teatro de lá, pois além de pequena (o que sou até hoje), era estudante secundarista. Combinei de encontrar algumas pessoas na rodoviária e lá me fui, com a mochilinha nas costas contendo uma muda de roupa e a flauta. Levava também a carteira de trabalho assinada por minha mãe no primeiro de maio. Ela dizia que se eu fosse presa, seria melhor ser tratada como trabalhadora do que como estudante, e estava certa. Trabalhadores tinham o status de quem lutava por melhores condições de vida. Estudantes só faziam baderna. Na entrada do ônibus encontrei o Tony. Era um grandalhão de quase dois metros, doce feito mel. Tenho uma saudade dele... Me pediu que levasse os instrumentos do Onny pois eu tinha passagem para o primeiro ônibus e o dele só sairia dali a duas horas. Levei, é claro. No caminho fui tocando cada instrumento e pensando em quem seria o tal Onny. Isso lá é nome de gente? Era. Era o nome de um índio boliviano, lindo de morrer. Sonhei uma vez que tinha uma filha dele, indiazinha de olhos negros e cabelo de azeviche. Curiosamente tive três loiros de olhos castanhos feito mel. Encontrei o cara, entreguei os instrumentos: zamponhas, charangos e outros troços esquisitos. Estávamos num ginásio onde aconteceria o enésimo (já não me lembro) "Encontro de Estudantes de Geologia do Brasil". Tinha geólogo de todo canto. De anormal (normal era ser geólogo e chamar pedra de rocha) só tinha eu (pelo menos até a meia-noite, mas essa já é outra estória). Comecei a beber, cantar e dançar. Eram deliciosas essas festas. Lembrando dessa época agora, percebo que nunca tinha me dado conta da liberdade que tinha para fazer o que quisesse. Minha mãe nunca me proibiu nada, desde que eu desse notícias. Bom, "nada" também não. Ela não me deixou ir pra Bahia de carona num caminhão com um namorado (mas essa também é outra estória!). Quem conhece Rio Claro sabe que a cidade é meio americanizada. Tem ruas e avenidas numeradas: avenidas são pares e ruas ímpares (ou o inverso). Enfim, é bastante fácil determinar distâncias e encontrar lugares. Tinham cedido uma república perto dalí pra nossa turma, pois éramos convidados especiais (o grupo de teatro). Eu participava porque minha mãe "adotara" mais um irmão, o Vitor, filho de uma amiga de colégio, estudante de geologia e meu confidente mineiro, uai. Ele me tratava como a irmã caçula que não tinha e me levava para todo canto. Hoje em dia não temos contato, mas sei que ainda sinto sua falta. Retomando a estória (me perco pelas veredas tortuosas das lembranças) alguém me chamou e disse: - Mirinha, o Onny precisa de acompanhamento na apresentação de música, você topa? Topei, claro. Peguei minha flauta e me mandei para a rua 20 e tantos (ou era avenida?). Cheguei e toquei junto com ele algumas músicas bolivianas. "Cuando te miro
que pasas por mi lado Besa que te besa, boquita
de cereza, Porque no tengo lo que
quisiera darte Besa que te besa, boquita
de cereza, Foi divertido. Tudo era divertido. Tudo possível, nada complicado. Se queria andar andava, se sentia sede bebia, quando precisava cantar cantava. Voltamos depois para a festa e bebemos e dançamos até não poder mais. No fim da noite, já clareando o dia, fomos procurar nosso canto. Eu corria pelas ladeiras abaixo, sentindo que o vento podia me levar. Queria voar. A turma me chamava e eu nem olhava. Lembro da sensação de felicidade plena, do ar da manhã enchendo meu corpo de vida, do riso fácil, do gosto bom de ser querida. O tal Onny começou a tocar charango me chamando pra acompanhar e foi assim que voltei, feito rato ouvindo o flautista, que neste caso era um charanguista. Eu era assim. A vida era assim: fácil, linda, nada complicada. E eu vivia bêbada, embriagada de felicidade. *Boquita de cereza - takirari boliviana de Oscar del Valle (vocais, quena, charango, guitarra, harpa, güiro) |
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