EMBRIAGUEZ
|
|
Luiz
Fernando Kiehl
|
|
Inácio
estava exatamente naquele momento fugaz, ao mesmo tempo gostoso e angustiante,
em que vamos passando do sono para a consciência sem conseguir lembrar que
dia é o que está começando; bem naquele ponto em que não recordamos quem
somos e até ficamos em dúvida se estamos vivos ou já morremos. Pelo silêncio
à sua volta, calculou que era de manhã, bem cedo. Em seguida, percebeu que
tinha dormido em um lugar duro e que estava deitado de lado, porque lhe
doíam o ombro e o quadril esquerdos.
Escutou o pipiar de um passarinho bem perto e, meio desconfiado, entreabriu o olho esquerdo. À sua frente, viu um plano cinza-claro, meio turvo, que se prolongava desde a sua cabeça até o infinito. Ainda sem fazer idéia de onde estava, fechou o olho que era mais míope e abriu o direito, o que lhe mostraria o mundo de uma perspectiva um pouco mais alta. A visão o fez fechá-lo rapidamente como se, com isso, pudesse afastar a realidade. Deixou passar mais algum tempo e experimentou abrir os dois olhos de uma vez só, na inútil esperança de que se houvesse enganado. Mas a verdade continuava ali. Havia dormido na calçada de uma rua que não conhecia e o passarinho ciscava à sua volta, batalhando a primeira refeição do dia. Fechou novamente os olhos tentando se lembrar do motivo da bebemoração da noite passada, mas a sua memória estava reduzida a um branco de sabão em pó. Ouviu um carro que passou buzinando atrás dele e sentiu o vento na sola dos pés. Preocupado, deduziu que estava sem sapatos e, talvez, sem meias. Lentamente foi se recordando que fora casado e que tinha dois filhos pequenos, cujos nomes estavam na ponta da língua mas lhe escapavam no momento. Deixou-se ficar ali mesmo por um longo tempo, deitado de costas até que as dores melhorassem. Desta vez, ele tinha de reconhecer, realmente havia se excedido. Sentiu a boca seca e uma irresistível vontade de tomar uma cerveja bem geladinha. Levantou-se com dificuldade, amparando-se no portão da casa em frente à qual dormira e esperou que o mundo parasse de girar. Ajeitou a gravata que, apesar de tudo, ele fazia questão de usar e sacudiu a poeira do surrado terno azul-marinho. Desistiu de procurar os sapatos e saiu à procura de um bar, caminhando com a dignidade que as suas condições permitiam. |
|
Protegido
de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto
acima sem a expressa autorização do autor
|