O
ÚLTIMO GOLE
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Lisa
Simons
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Até então o sabor do álcool
só lhe fora revelado através dos bombons de cereja da Kopenhagen, do pavê
regado ao champanhe e das "sangrias", onde o vinho tinto era
tão diluído que o resultado era uma bebida rósea e adocicada. Dessa forma
nenhum efeito etílico havia dominado aquele corpinho frágil e muito menos
a cabecinha aluada de adolescente, perdida no passatempo predileto: a
imaginação. Seu único prazer eram os devaneios noturnos, onde Eros escapava
com freqüência e conduzia sua presa a um mundo até então desconhecido
e, muito embora não realizasse inteiramente sua libido, pois sempre alguma
coisa teimava em interromper aqueles sonhos a um mesmo tempo constrangedores
e agradáveis, deixava-a, boa parte da manhã, entregue ao feedback
daquelas sensações.
Mas chegou o dia do seu batismo, a aprovação no vestibular autorizava qualquer excesso, até a possibilidade de comemorar com amigos, na base da cerveja, caipirinha, um vira-vira sem fim. A primeira bebida que lhe chegou aos lábios veio de um desconhecido usando barba, no meio da comemoração. Era um líquido denso, cor de chocolate, cheio de gelo picado. Perguntou: O que é isso? Ele respondeu: Batida de amendoim!. Nunca ouvira falar, mas antes que dissesse não, obrigada, o conteúdo do copo já escorregava pela sua garganta, matando sua sede e a surpreendendo: Puxa é gostoso... docinho...!. Cada um dos aprovados entornava um copo e os demais repetiam o gesto. Não demorou para ela sentir os efeitos etílicos da bebida. A cabeça rodava, as palavras saíam com facilidade, ela antes inibida, já se pendurava no pescoço do barbudo desconhecido que a segurava pela cintura, cantando no seu ouvido: "Vale-tudo, vale o que vier! Só não vale ficar homem com homem e nem mulher com mulher!". Não resistiu, saiu dançando, rosto colado na barba áspera. Nunca se sentira tão leve, tão fluente, sua eloqüência fora revelada como se apenas o superego falasse, o corpo já não a obedecia, e enquanto um lado seu, ainda consciente, dizia: controle-se, o outro já havia se adiantado e agarrado o tal barbudo impertinente. Passou a noite com ele, que por coincidência, também havia sido aprovado no curso de Economia, promissor nos tempos do "Milagre Brasileiro". Foram quatro anos de estudo na graduação, algumas especializações no exterior e muitos, muitos drinques. Profissionalmente o casal era um sucesso: dava certo em tudo, principalmente nas aplicações, daí a garantir uma existência de um luxo considerável foi um pulo. Mas enquanto ele tinha total controle sobre a bebida, ela não conseguia obedecer aos limites do razoável e muitas vezes expunha-se ao ridículo. As brigas passaram, então, a ser freqüentes e o mal estar que seus porres traziam à vida em comum a comprometiam, inclusive, no seu trabalho de consultoria. Um dia ele fez as malas, saiu de sua vida como entrou: inesperadamente, sequer rabiscou um bilhete. De seu, apenas o advogado e a procuração do divórcio. Deixou-a aniquilada e desde então ela nunca mais bebeu aguardando seu regresso, inutilmente, e isso já faz muito tempo. Habituou-se ao exercício de viver cada dia como se fosse o da volta de seu único bem verdadeiro. Cuida do corpo com esmero, veste-se com cuidado, escolhendo as roupas que lhe favorecem a silhueta e a deixam mais jovem. A espera não a aborrece, nem a revolta, mas a expectativa de uma nova possibilidade com ele, há muito vem fortalecendo pequenas manias, que obsessivamente incorporou à sua rotina: como arrumar as gavetas do ex-marido, não esquecendo de renovar os saches, colocar à mesa talheres para dois e, ao lado da cama, os chinelos e um robe de seda azul-marinho, a cor preferida dele. Os fins de semana ela os passa no apartamento envidraçado, inteiramente voltado para o mar e, como se estivesse flutuando num imenso aquário, circula pelos diversos aposentos inúmeras vezes, finge conversar com alguém no espelho e exibe, vez por outra, seu corpo nu, envolto apenas em fino lingerie. A solidão desse ritual chega a comover. Seu bar é de muito bom gosto, custou-lhe horas preciosas de seu tempo com o decorador e muitos dólares de suas aplicações nas Ilhas Cayma. Nele as taças de cristal da Boêmia, rigorosamente organizadas, brilham transparentes e convidativas. Os licores franceses, caríssimos, estão sempre ao alcance de suas mãos. Os vinhos repousam na adega aclimatada, à espera de serem degustados no primeiro jantar. Costumeiramente, acaricia o conteúdo de alguma bebida aprisionada em uma das garrafas raras. Imagina-lhe o sabor, o prazer do torpor envolvendo-a, mas fica nisso, imediatamente retorna o invólucro à prateleira de vidro jateado, com cuidado para não esconder a marca. |
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