Tema 030 - EMBRIAGUEZ
BIOGRAFIA
SANTOS
Fernando Zocca
Viemos da Bahia no finzinho da década de cincoenta. Meu pai logo percebeu que na capital paulista o jogo seria mais difícil, por isso nós quatro resolvemos seguir rumo ao interior.

Nossa família sempre foi composta por quatro pessoas: meu pai que era pedreiro, minha mãe, coitadinha do lar, minha irmã que tinha um pequenino defeito congênito que lhe atribuiu a condição de oligofrênica e eu servente, que tinha a função de ajudar papai nas obras.

Minha irmãzinha babava muito e se arrastava pelo chão de cimento tingido com aquele corante chamado "vermelhão". Ela não pronunciava as palavras de forma correta. Não tinha manifestações lógicas ou racionais. Era impulsiva e gostava de um molequinho que residia numa casa vizinha. Quando aquele tal vinha xeretar em nosso lar, ela ficava toda agitada. Sua saliva escorria pelo queixo e lamecava as vestes.

Eu sinceramente não gostava daquele caipira. Achava muito esnobe e arrogante. Tinha boa aparência. Seu pai, se não me falha muito a memória, era professor. Sua mãe irritável com facilidade. Numa ocasião depois de suas reações fisionômicas ao ver minha irmã eu lhe disse que ele ficaria igual a ela.

Eu gostava de um outro carinha que residia um pouquinho mais longe.Tinha umas irmãs bonitas e seu pai era, como direi, "maquinista" de bonde, da linha que ligava a região central da cidade com o bairro periférico no setor norte.

Quando esse meu amigo de quem eu gostava chegava ali em nosso humilde lar minha mãe logo ficava contente e feliz. Conversávamos bastante e não eram raros os momentos em que nos reuníamos nas tardinhas para contarmos historinhas um para o outro.

Mas a relação ficava muito difícil quando aquele da empáfia chegava. Ele não falava muito. Gostava de ouvir. Nós cobrávamos um assunto ou outro e só com muito custo o do orgulho dizia qualquer coisa, da qual logo nós dois ríamos.

Mas estávamos ficando adolescentes. Meu pai nas construções que contratava precisava cada vez mais de ajudantes. Eu fui ficando sem tempo para as reuniões de lero-lero.

Meu amiguinho filho do "motorneiro" arrumou um emprego numa oficina mecânica, de modo que extinguiram-se as confabulações ociosas.

Mas o filho do professor não trabalhava. Estava agora terminando o ginásio e ficava cada vez mais "play boy". Lembra daqueles frescos que imitavam o Roberto Carlos? Então... Dava-me um ódio...

Mas numa certa ocasião surgiu-me uma oportunidade para fazermos uma excursão para Santos. Sairíamos a noitinha e pela manhã estaríamos nas praias comendo nosso franguinho enfarofado.

Minha mãe quando lhe falei a novidade me aconselhou a convidar o "boy" dando-me mais algumas instruções.

Bem tudo combinado, saímos os três da nossa esquina em direção ao ponto donde tomaríamos o ônibus. Estávamos alegres, felizes e contentes. Sussurrei ao meu coleguinha preferido o plano que tinha em mente para desacreditar o chato professoral que tinha arroubos de sapiência.

Quando chegamos, ao lado da igrejinha lá se encontrava o ônibus fechado à espera. Aproveitei e convidei os dois acompanhantes para irmos até o barzinho da esquina onde compraríamos um Martini.

Com a garrafa aberta nas mãos tomei o primeiro gole, no gargalo mesmo e passei a bebida para os outros dois.

O professoral "boy" com sua pose intelectualizada fez onda para sorver a primeira dose. Mas não foi difícil. Depois de algum tempo estávamos já mais alegres e soltos.

Bom o tempo foi passando e os demais viajores foram chegando. Todos tomaram seus lugares e o motorista fazendo o sinal da cruz deu início à viagem.

Quando percebi que o gostosão já estava falando mole, aproveitei a oportunidade em que a garrafa passou por minhas mãos e lá coloquei um remédio que era usado por minha babenta irmãzinha.

O gostosão logo depois da ingestão da terceira dose de Martini batizado começou a falar alto. Todos no ônibus silenciaram. Ele aumentava cada vez mais o tom até quando começou a gritar. Aí alguém teve a idéia de lhe dizer que ficasse quieto em nome de Deus. Bem depois disso o que se seguiu foi um discurso contra tudo e contra todos para a comoção geral.

Aproximei-me do louco e botando as mãos na sua boca mandei que ficasse quieto. Ele mordeu meus dedos e depois disso começou a cuspir no vidro da janela. As cusparadas foram sendo lançadas por mais de uma hora.

Quando chegamos em Santos já pela manhã pude perceber o quanto envergonhado se achava o imbecil. Ríamos de sua idiotice e ignorância.

Quando voltamos para nossa cidade, comentei com as irmãs bonitas do meu coleguinha preferido toda a cagada que aquele vizinho burro havia feito. Narrei tim-tim por tim-tim toda a vergonha que nos fez passar.

Depois disso tudo nos mudamos e não soubemos mais daqueles chatos. Soube que seu pai tivera um ataque cardíaco na repartição em que trabalhava. Soube também que aquele "play boy" gostosão que gostava do Roberto Carlos e que era preferido pelas gatinhas do trecho havia sido internado numa clínica psiquiátrica Espírita.

Eu achei pouco. Era muito bem feito.

Hoje, meu amigo, com os meus cabelinhos já grisalhos, procuro nas missas da manhã da igrejinha do nosso bairro a tranqüilidade para o meu coração.

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor