FAMÍLIA
TRAPO
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Roseli
Pereira
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Não
sei bem o porquê, mas sempre penso em escrever uma crônica com este nome
quando volto de um daqueles finais de semana em que a famiília inteira se
reúne na casa dos meus pais. É hoje.
Às vezes a gente vai chegando aos poucos e a confusão começa devagar. Às vezes chega todo mundo junto, e eu juro que nem sei o que parece. De um jeito ou de outro, a primeira coisa que acontece são quatro cachorros latindo, correndo e pulando feito doidos. Nos carros, na gente, na bagagem. E tentando desesperadamente lamber. Lamber qualquer coisa que se mova, com a mesma alegria que eles sentem quando encurralam, rosnando, as pessoas que não fazem parte da matilha. Não estranhe, que cachorro é assim mesmo: inclui as pessoas na matilha. Lá, portanto, o chefe da matilha é o meu pai e a gente deve ter o status de colega. Aí alguém abre a porta e ninguém sabe se entra de uma vez e larga as mochilas, se cumprimenta quem abriu ou se começa a gritar "fica, fica, fica" ou "sai, sai, sai", se é que alguns dos "colegas" já conseguiram entrar. Depois de uma pequena batalha, finalmente conseguimos separar as espécies. Humanos pra dentro, cachorros pra fora. E é aí que começa a segunda confusão. Sete adultos tentam conversar com os outros seis ao mesmo tempo, um adolescente tenta conversar ao telefone e os bebês vão se metendo em todos os assuntos. A menina matracando que nem uma patinha, o moleque fazendo "bé". Note que o "bé" não é choro, não. É um "bé" de cabritinho, puro e simples. Ele vai engatinhando rapidinho e dizendo "bé". Não me pergunte por que. Da Itália a gente deve ter só uns dois por cento na carga genética. Se tanto. Mas parece que são cem, incluindo o macarrão. Aliás, falando em genética, veja só como a coisa se distribuiu: como o meu pai fala alto e a minha mãe fala muito, tenho um irmão que fala muito alto e outro que só fala muito. E vive pedindo pra os outros abaixarem o volume. As cunhadas, tadinhas, essas vieram de famílias muitíssimo mais civilizadas, e não conseguiram ensinar nadica pra gente. Pelo contrário: acabaram se adaptando maravilhosamente bem. Os sobrinhos, pelo menos, são normais: haja o que houver, o adolescente continua ao telefone e os bebês continuam se intrometendo em todos os assuntos. Uma chamando a mamãe e o outro fazendo bé. De mim não vou falar nadica. Como todos os meus dois leitores já estão cansados de saber, eu só ligo o computador pra falar da vida alheia. E tenho dito. Mas voltando à cozinha, que é onde todo mundo se junta, chega um momento em que a minha mãe berra um inocentíssimo "O que é que vocês vão querer comer?". E é imediatamente soterrada por nove vozes diferentes que falam, ao mesmo tempo, coisas mais ou menos assim: "Sardinha na brasa!", "Nhoque!", "Cupim assado!", "Risoto!", "Churrasco!", "Lasanha!", "Quarteirão com queijo!", "Batatinha!" e "Bé". Mas um bé com direito a tradução simultânea da prima: "Ele tá falando papinha, vó!". Bom, democracia é assim mesmo. Depois de alguma negociação, pelo menos cinquenta por cento dos pedidos chegam à mesa mais ou menos rapidinho. Desconfio que ela tem tudo pronto no congelador. E aí alguém fala que vai pegar uma cerveja, e também é soterrado por nove pedidos: "Faz uma caipirinha?", "Eu quero de vodka!", "Vinho tinto pra mim.", "Que tinto, que nada. Me abre um branco.", "Tem Campari?", "Guaraná diet, por favor", "Dá uma Coca Cola?", "Tóta-tóia, tóta-tóia" e "Bé". De novo com tradução: "Ele tá falando leitinho, tio!" Mas aí não tem democracia, não. É cada um pra si, com mordomia apenas pra quem é dono da casa ou ainda não tem tamanho para abrir a geladeira. Aí vem a refeição, que você já pode imaginar como é. E, depois de arrumar a cozinha, cada um vai pro seu canto, cochilar. E quando a gente acorda, seja de noite, seja de manhã, a maluquice recomeça no quarto do chefe da matilha. Quem chega primeiro vai se empilhando no ninho. Quem chega depois se acomoda ao redor, porque a pilha já quebrou o estrado, uma vez. E aí são seis adultos falando ao mesmo tempo uns com os outros, um adulto fazendo psiu porque quer ver televisão, um adolescente falando ao telefone, um bebê matracando e o outro chupando o cobertor e fazendo bé. Se for de noite, não tem lá muita democracia gastronômica. Porque, de noite, a pergunta da mãe é assim: "Vocês vão comer pizza, né?". E aí, milagrosamente, as nove vozes são mais ou menos unânimes. Portuguesa. Mas sempre sobram meia de escarola e uma inteira de muzzarela praticamente intocadas, e ninguém nunca descobre quem foi que escolheu. Se a gente for ficar mais um dia, a coisa se repete com pouca variação. Se não, todo mundo começa a se preparar para sair ao mesmo tempo, como reza a tradição. As mulheres vão recolhendo as tranqueiras e juntando a bagagem na cozinha. Os homens vão levando tudo pros porta-malas. Cada marido sabe quais são as tralhas da sua prole, mas o meu pai, que é o dono da prole inteira, não conhece sacola de ninguém e sempre quer ajudar. Aí, bem no meio daquele entra e sai e sobe e desce e fala, fala de sete adultos, um adolescente e dois bebês, ele levanta os volumes e pergunta: "Isso aqui vai no carro de quem?". Geralmente, a única resposta que recebe é um indiferente "e eu sei lá?" da minha mãe. E é aí que o bicho pega. Mas ninguém consegue ouvir direito por causa dos gritos de fica, fica, fica ou sai, sai, sai. Nossos colegas são incansáveis. Então acontece um pequeno reboliço até que o controle do portão finalmente seja localizado em local bem improvável, o adolescente é convocado a desligar o telefone, os carros começam a sair, os cachorros fogem e todo mundo grita entra, entra, entra, as pessoas vão atravessando o quintal com os bebês ou o que sobrou do almoço no colo, uns voltam para procurar chaves, outros voltam para buscar coisas esquecidas, alguém se lembra de fazer xixi, e, depois de uns quarenta ou cinqüenta minutos, finalmente todo mundo grita tchau e os carros desaparecem na curva da rua. Eu já fiquei por lá depois que a turba ensandecida foi embora. E o silêncio que sobra é tão profundo e tão assustador, que parece que acabou de passar um furacão. |
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